O que as mandalas tibetanas nos ensinam sobre a arte do desapego

Por Marcella Starling

No meio de um templo budista tibetano, um barulho se destaca: o som de um tubo de metal sendo constantemente raspado por um pequeno bastão. O barulho não é algo que incomode, mas não é de longe é algo que passa despercebido naquele santuário do silêncio. São alguns monges que através de um trabalho constante e disciplinado, cuidadosamente acomodam em seus devidos lugares, milhões de grãos coloridos de areia, para a expressão sagrada da arte e da fé.

Mas diferente da arte feita por Da Vinci e Van Gogh, que venceram o elemento tempo e até hoje nos espantam por sua beleza e mistério, as mandalas dos devotos já possuem data de validade – no momento que ela estiver completa e for capaz de tirar o fôlego do mais incrédulo, ela será destruída, e suas cinzas serão devolvidas ao universo.

Na primeira vez que li sobre o assunto, inconformada com a livre decisão de se destruir algo fruto de uma dedicação tão sincera e exclusiva, me perguntei ‘por quê?’

Hoje, consigo entender.

Apesar de ser estonteante, o ritual das mandalas não nos espanta pela sua perfeição e beleza. Muito menos pelo mistério que o ronda, afinal não é mistério a lição que os metódicos devotos nos passam: as maravilhas da destruição, enquanto reconstruir é uma possibilidade constante e necessária. Nos ensinam melhor do que qualquer bazar beneficente, a arte do desapego.

Pois bem, me dediquei por 24 anos a depositar minhas ‘pedras’ de areia emocionais nos lugares … errados! E uma vez, erroneamente entendida como pronta, a mandala gritava comigo. Me chamando atenção para aquela figura, que eu mesma construí, feia e assimétrica. Aquilo não poderia ser nunca chamado de arte, menos ainda de fé.

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Monges tibetanos iniciando a criação de uma nova mandala

E por mais que o contra senso seja evidente, quanto mais eu olhava para a minha imagem percebida, menos eu queria mudá-la. Não é que o feio não me incomodasse, mas é que eu não acreditava um dia ser capaz de nada melhor. Passando o feio ser o meu bonito, dada as limitações impostas por mim… a mim mesma.

Ademais, imagina o trabalho?!! não achava que destruir fosse difícil, mas construir, gastar todos aqueles anos, para nada? Melhor ficar no que pelo menos já tinha ‘acabado’.

Mas a surpresa é que não estava acabado. E entender isso foi o primeiro passo.

O que antes gritava comigo, começou a me bater, tornando a situação intolerável. Eu sentia no ar o cheiro de ‘algo precisa mudar’. Acredito que todos grandes guerreiros sentiram o mesmo cheiro antes de se lançarem nos campos de batalha em busca de honra, justiça ou glória. Não que eu seja uma grande guerreira, muito menos estava a procura de qualquer mudança socialmente desejável. Mas fato é que aquele cheiro me fez criar coragem de ir para o campo de batalha com meu pior inimigo – a minha própria mente.

Nesta guerra, descobri que muito mais difícil do que construir, é destruir. As ‘pedras’ de areia já estavam tão pesadas e arraigadas que era necessário muita força de vontade e persistência para movê-las ou até mesmo destruí-las. Ao contrário da construção que eu quase nem percebia quando um grão caía em seu lugar, na destruição eu vi e senti todos os grãos ali dispostos.

Quando finalmente a destruição foi aceita, enxerguei que além de mais difícil, ela era mais bonita. Ela se tornou tão natural quanto necessária. E quando o ‘nada’ ali restou, fiquei parada diante daquele vazio, que agora me solicitava, com ternura, a contemplá-lo. e como se um grande mestre ali o tivesse colocado, estava um espelho, refletindo a minha imagem real.

Foi o espaço dado pela destruição que me ensinou o valor do vazio.

 

Antes não havia espaço antes para o espelho. Minhas ‘pedras’ de areia, ocupavam todo o lugar. Foi o espaço dado pela destruição que me ensinou o valor do vazio. passei a celebrar o vazio como um convite ao novo. Uma oportunidade de construção. E como nada mais gritava comigo, consegui me escutar. Escutar que ter meu vazio significava espaço para caber o meu mundo.

E pela primeira vez fui invadida pela fé, pela gratidão e pelo amor. E naquele momento tive certeza de que eu era capaz de fazer com que a minha próxima mandala fosse linda. Mas que mesmo assim, eu não me deixasse enganar, porque mesmo linda ela não estaria pronta, e teria que ser novamente destruída e oferecida ao universo, para que então eu novamente iniciasse o processo artístico do autoconhecimento.

Entender que ela nunca estará pronta, foi o penúltimo passo, de muitos últimos passos que eu já dei.

E assim como um dente-de-leão que chega ao seu esplendor antes de ser soprado e devolvido ao universo, é a minha compreensão da efemeridade da vida.

Agora pare! E vá escutar cada grão que cai em sua mandala…

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Karsha monestary, near Padum, Ladakh.
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Destruição de uma mandala de areia. Fotografia de Jessica Foote.

Texto reproduzido com a autorização da autora.

 

contioutra.com - O que as mandalas tibetanas nos ensinam sobre a arte do desapegoMarcella Starling

É mineira e paulista de coração. É advogada e estudante de economia. Está tentando ser aquela pedra jogada ao rio, que gera pequenas ondas ao redor.

Leia mais textos da autora em seu blog The Shrinking Pants 







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