Um golpe do destino: Quando o doente é o profissional da saúde.
Title: DOCTOR, THE • Pers: HURT, WILLIAM / PERKINS, ELIZABETH • Year: 1992 • Dir: HAINES, RANDA • Ref: DOC069AK • Credit: [ TOUCHSTONE / THE KOBAL COLLECTION ]

Por Marcela Alice Bianco e Bruna Arakaki
Cine Sedes Jung e Corpo

Um golpe do destino (Direção de Randa Haines 1991, EUA), conta a história de Dr. Jack, um exímio cirurgião que, ao descobrir em seu próprio corpo, um câncer nas cordas vocais passa de médico à paciente de uma maneira bastante abrupta. Esse evento trará para ele enormes mudanças em sua personalidade, vida pessoal e na forma como exerce sua profissão e cuida de seus doentes.

Logo no início da trama Dr. Jack nos é apresentado como alguém tecnicamente exemplar em sua especialidade, mas como uma pessoa fria, emocionalmente distanciada de seus pacientes, arrogante e com um humor ácido e insensível. Considera apenas as questões técnicas que envolvem os procedimentos cirúrgicos, mas negligencia drasticamente os afetos e a natureza humana de seus pacientes.

É muito comum que nossas primeiras impressões sobre o personagem nos cause irritação e repulsa em relação ao seu comportamento.  O mesmo acontece quando vemos na mídia ou em nossas próprias experiências posturas arrogantes, negligentes e de descaso vindo de profissionais da saúde. Porém, não nos damos conta que tais condutas podem refletir um processo de adoecimento, o qual damos o nome de Síndrome de Burnout. Uma das dimensões caraterísticas dessa síndrome é a despersonalização, ou seja, o desenvolvimento de uma insensibilidade emocional em que o profissional passa a tratar seus pacientes de maneira massificada, fria, sem considerar seus aspectos individuais e emocionais. Este é justamente o comportamento que evidenciamos em Dr. Jack. Portanto, antes mesmo do diagnóstico do câncer nas cordas vocais, já poderíamos dizer que o personagem estava doente. Seu distanciamento dos pacientes seria então um mecanismo defensivo inconsciente para negar os aspectos emocionais com os quais ele não saberia lidar.

Admitir o conteúdo patológico de tal atitude impessoal, nos ajuda a buscar também em nós uma atitude mais humana em relação ao personagem. Sua frieza em relação aos pacientes, faz com que nós também tenhamos dificuldades em nos aproximar empaticamente de Jack, negando sua própria subjetividade e julgando-o de maneira irrepreensível. Pensando nos profissionais da saúde da vida real, tais ações desencadeiam uma rede sucessiva de descaso, incapaz de recuperar um sistema de saúde funcional e promotor da cura em todos as direções.

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Portanto, é de extrema valia que passemos a considerar que por trás de todos profissional da saúde encontra-se um paciente, ou seja, em algum lugar do curador também habita um ferido.

Historicamente, a visão cartesiana que separou o corpo (res extensa) da mente ou psique (res cogitans) fez com que também fossem separadas a razão da emoção, havendo uma subordinação da segunda em relação a primeira. Passou a ser mais importante dissecar, dividir, analisar, discriminar, ordenar, etc., do que que compreender algo dentro de uma função simbólica e integrativa. Um sintoma passou a ser visto como algo isolado, que necessita ser entendido em seu desenvolvimento para que seja controlado ou extirpado. Neste caso, perde-se a capacidade de entender o sintoma e o processo de adoecimento dentro de um contexto mais amplo e vivencial, capaz de abarcar a vida emocional do paciente, seu contexto social, sua biografia e seus recursos de enfrentamento.

Tanto a Psicossomática quanto a Psicologia Analítica têm se esforçado para romper com esta visão dualista do ser humano, buscando uma compreensão mais ampliada e simbólica dos fenômenos que incidem sobre o humano. Para ambas as abordagens corpo e psique são vistos como fenômenos integrados, que se inter-relacionam e produzem manifestações de maneira simultânea frente aos desafios que o organismo enfrenta na sua relação com o ambiente externo e interno.

Portanto, é com esse olhar que buscaremos compreender a vivencia de Dr. Jack, buscando o símbolo que se encerra por trás da sua jornada existencial.

Numa visão analítica, poderíamos dizer que Dr. Jack encarna, especialmente, o lado negativo da figura mítica de Esculápio ou Asclépio, deus grego da medicina e da cura. Na versão mais corrente do mito, o nascimento desse deus é marcado pela morte da mãe, o que faz com que seu pai o leve para ser criado pelo centauro Quíron, que o educou nas artes da cura e da caça. Esculápio se torna o maior curador e cirurgião de seu tempo, passando a desfiar a lei divina quando consegue ressuscitar os mortos. Como punição, o deus é fulminado por um raio mortal lançado por Zeus contra ele.

Em uma análise parcial deste aspecto do mito, podemos pensar que o trauma do luto da mãe e do abandono do pai que Esculápio sofre em tão tenra idade, fez com que ele encontrasse dificuldades no desenvolvimento pleno da sua função afetiva, ligadas a experiência com o materno e com o feminino. Em compensação com o centauro Quíron, desenvolve de maneira hipertrofiada suas funções cognitivas, pautadas na lógica e na técnica. Tal fato torna-o extremamente habilidoso, mas também gera uma vivência onipotente que o fez ignorar as leis da natureza. Assim, ele desafia as leis da vida e da morte, ressuscitando os mortos. Sua inflação egoica fez com que ele cometesse uma infração tida como gravíssima e que leva a sua própria finitude.

A trama não nos conta nada sobre a infância de Dr. Jack que nos dê pistas do que o levou à personalidade que demostra no filme. Todavia, fica claro o afastamento do médico de sua função afetiva e dos aspectos do feminino/materno relacionados com o cuidado e com o acolhimento, sendo a mesma compensada por uma atitude egoica de onipotência, frieza, agressividade e distanciamento emocional. Cabe aqui ressaltar que, tais características acabam por ser estimuladas e privilegiadas na própria formação profissional.

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A postura unilateral de Dr. Jack não o leva a morte concreta, como no caso de Esculápio, mas a doença que o acomete traz esse risco e também a necessidade de uma morte simbólica, de uma transformação que o tire de uma posição uniliteral e onipotente para uma atitude de mais integrada e empática em relação as pessoas e a si mesmo.  E, não houve outra maneira de fazê-lo, do que levando Dr. Jack a experimentar justamente o seu oposto: a sensação de impotência que sua doença lhe causou e o tratamento frio que ele mesmo passa a receber de seus colegas de profissão.

Dentro do referencial da Psicologia analítica temos que, esse aspecto do ferido que existe em cada curador, precisa encontrar espaço, ser trabalhado e vivenciado para que o profissional possa ajudar seus pacientes.

A figura mítica de Quíron nos ajuda no entendimento deste processo ao falar do arquétipo do Curador Ferido. Conta o mito que, Quíron era um centauro, ou seja, um ser metade homem e metade cavalo. Era inteligente, bondoso, excelente conhecedor das artes da cura e reverenciado por ser professor e tutor. Acontece que, em determinada ocasião, esse personagem é ferido acidentalmente por uma flecha envenenada, que o torna portador de uma ferida incurável e dolorosa. Simbolicamente, este mito nos conta que todo curador tem dentro de si uma limitação, uma dor, uma fragilidade e que quando este se torna consciente de sua própria ferida é capaz de compreender empaticamente a dor do outro, auxiliando de maneira mais integrada na sua recuperação da saúde.

Inicialmente Dr. Jack acredita que não precisa haver troca com seus pacientes e que ele não será tocado emocionalmente pela subjetividade dos mesmos. Ele se percebe como um guerreiro protegido pela sua armadura técnica de cirurgião. Porém, é sua própria doença que o toca. Ele é atingido por ela de maneira inesperada e brutal, assim como o centauro Quíron, passando a estar no exato lugar (concreto e simbólico) em que se encontravam seus pacientes.

Assim, compreendemos a doença de Dr. Jack como um símbolo que permitiu a integração e o resgate da sua função afetiva e uma ampliação da consciência que o transforma como pessoa e como médico.

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Neste ponto traremos dois aspectos que consideramos importantes neste resgate da subjetividade: a relação de Dr. Jack com os aspectos relacionados à emoção e ao feminino e o papel da comunicação.

Sobre esses aspectos, destacamos algumas figuras centrais e sua relação com Dr. Jack: a esposa, a médica que o atende inicialmente, sua nova amiga, o colega médico que tinha uma postura mais humanizada no tratamento com os pacientes e a enfermeira que se recusa a cantar durante as cirurgias.

Nota-se, que a relação com a esposa é marcada pela mesma hierarquia que ele desenvolve na profissão, o que gera silêncios, distanciamento e frustrações para ambos. Assim, mais uma vez percebemos a polarização entre feminino e masculino, razão e emoção, evidenciada aqui no relacionamento homem e mulher. Tal fato vai tornando a comunicação cada vez mais deficiente entre ambos, eclodindo numa série de desentendimentos e conflitos.

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Ao perceber os primeiros sintomas, Dr. Jack é encaminhado para uma médica tida como muito competente em sua especialidade. Ocorre que, ela tem para com ele a mesma postura fria e indiferente com a qual ele age quando em seu papel de cirurgião. Ela funciona para ele como um espelho de sua própria identidade, fazendo com que saia da inconsciência em que se encontrava, para começar a compreender os prejuízos de suas atitudes no tratamento com seus pacientes, especialmente no que diz respeito a comunicação e a troca.

O colega médico é inicialmente hostilizado e tido como motivo de piada entre os demais profissionais. A consideração que tem para com os gostos e para a personalidade de seus pacientes é tida como fútil e desnecessária. O fato dele conversar com os pacientes já sedados durante o procedimento cirúrgico é visto como uma loucura.

A enfermeira auxiliar se recusa a cantar e participar do distanciamento emocional percebido durante a cirurgia do paciente que tentou o suicídio acontece. Sua voz se cala diante da cena.

Todos esses personagens nos dão pistas importantíssimas sobre a questão da comunicação. E neste caminho, podemos tratar do simbolismo das cordas vocais.  Parte do nosso corpo que nos permite a emissão de palavras que tanto podem acolher quanto agredir, transformar ou reprimir, ou seja, importante meio de expressão da empatia, da troca e do aprendizado comum da humanidade. É através de uma mesma língua que nos identificamos como pertencentes à uma mesma cultura, sociedade e à um mesmo povo. É a capacidade do uso da linguagem, entre os outros aspectos, que nos torna humanos. Além disso é a região da garganta que liga o corpo a cabeça, o irracional/emocional ao racional/mental.

A comunicação de Dr. Jack era inadequada, ineficiente, agressiva e desmedida. A mesma é interrompida pela cirurgia e pela doença. Fazendo com que ele precisasse encontrar meios alternativos para se comunicar e especialmente, escutar o que os outros tinha para lhe dizer sobre ele mesmo.

Cabe lembrar que, quando retoma a capacidade da fala, sua primeira expressão fala do amor e da importância da ligação afetiva dele com sua esposa. O que ele diz é: Eu te amo!

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Mas, não é com a esposa que Dr. Jack faz sua viagem de transformação. É através da relação de amizade que ele constrói com uma paciente em tratamento de câncer no mesmo hospital, que Dr. Jack será confrontado em suas inadequações e iniciado na vivência como paciente. Sua amizade com June se começa em um momento onde a comunicação de Jack traz problemas e ela o mostra como é estar do outro lado do cenário, ou seja, como é ser paciente. A amiga representa a ponte entre as polaridades razão e emoção, médico e paciente, curador e ferido, masculino e feminino, vida e morte numa nova dimensão. E, é a partir dessa vivência emocionante e integrativa que ele consegue sentir uma liberdade que nunca tinha experimentado. Uma liberdade que o tira das amarras da repressão e da defesa e o coloca num novo patamar de relacionamento com os outros e consigo mesmo.

Ele pede então para que o colega médico, de quem antes desdenhava, o opere. A enfeira que se recusava a cantar, entoa agora sua música preferida. Ele conversa com o coração do paciente em que realiza a primeira cirurgia ao voltar à pratica médica. A comunicação é restabelecida em todos as direções. Como pedido por sua amiga June em uma carta, Dr. Jack “abaixa o braço”, saindo de uma relação hierarquizada, onde ele estava acima e o outro abaixo, para uma relação horizontalizada que permite a troca, a valorização e a confiança mútua.

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Dr. Jack se despe de sua persona de cirurgião e agora consegue vivenciar a magnitude de sua personalidade total, restaurando o eixo ego-self.

Entrar em contato com a própria doença fez com que Dr. Jack pudesse ver seus pacientes sob um novo olhar, sendo este mais sensível, próximo e empático. Para além das mudanças como profissional da saúde, sua personalidade também passa por uma grande transformação, com resgate da função afetiva em todas as suas relações.

Ele percebe que, em nenhum momento, entrar em contato com seus sentimentos e agir empaticamente com seus pacientes, invalida ou prejudica sua atitude médica de cirurgião. Pelo contrário, quando Dr. Jack consegue se sintonizar com a dor de seus pacientes e reconhecer sua subjetividade. Ele não apenas os compreende em uma nova dimensão, mas valida sua experiência, trazendo o apoio e o conforto tão essenciais para a superação de uma doença ou situação de fragilidade. Para além do acolhimento, isto gera a possibilidade de assimilação pelo paciente da sua experiência, tantos em termos emocionais quanto cognitivos. Fazendo isso, o profissional desperta no paciente suas próprias forças curativas, ou seja, seu curador interno.

A transformação do médico é tão intensa que ele também se transforma como mestre e tutor de seus alunos (mais uma vez uma referência à Quíron). Ele muda drasticamente sua didática, fazendo com que os jovens médicos experienciem concretamente como é estar no lugar do paciente, como é estar internado, passar por procedimentos invasivos, sentir sua intimidade exposta, perder sua autonomia e tornar-se em algum grau dependente.

Mas, a questão é:  como conseguir ser empático e também conseguir ajudar o outro, mas sem identificar com o paciente, a ponto de ficar paralisado por sua dor ou tomado por sua angustia? Neste sentido, Jung falava da importância da relação dialética entre o profissional da saúde e seu paciente, ou seja, uma relação que permite que a personalidade de ambos seja expressada e considerada em sua integridade; um relacionamento que permite a troca, mas sem a perda dos papéis que ambos possuem na relação.

Como diz Jung: “conheça todas as teorias e domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”.

Sair da posição de Curador onipotente pode ser um alívio para o profissional, pois, isso o retira de uma postura heroica e onipotente e, assim, ele passa a compartilhar a responsabilidade com toda a equipe de cuidado, incluindo o paciente e sua família.

Por fim, precisamos compreender que a cura não é só sarar da doença, mas dar um passo em direção ao seu desenvolvimento como pessoa, compreendendo o que este evento simbolicamente representa no próprio caminho de individuação. E é fundamental que os profissionais da saúde façam suas próprias jornadas, buscando o autoconhecimento, a ampliação da sua consciência e mantendo acesa a chama do curador ferido que carregam dento de si.

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Bibliografia sugerida:

BIANCO, M. A. E quando o curador está ferido? Propondo uma abordagem simbólica para Síndrome de Burnout. Revista Jung e Corpo, Ano XIII, n. 13, 2013.

GROESBECK, C. J A imagem arquetípica do médico ferido. Revista Junguiana, São Paulo, v.1, p. 72-96, 1983.

GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. Rio de Janeiro: Achiamé, 1978/2.

GUGGENBÜHL-CRAIG, A. The emptied soul: on the nature of the psycopath. Spring Publications, 1999.

JUNG, C. G. A prática da Psicoterapia: Contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. In Obras Completas. 7ª Edição.  Petrópolis: Vozes, [1971], 2011, v. XVI/1.

RAMOS, D. G. A psique do corpo: A dimensão simbólica da doença. São Paulo: Summus, 2006.

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Este texto foi produzido pela Comissão Organizadora do Cine Sedes Jung e Corpo com base nas reflexões realizadas durante o evento realizado em novembro de 2015, com os comentários da Professora e Psicóloga JunguianaMaria Helena Baltazar e das Psicólogas convidadas Fernanda Monteiro Balthazar e Flávia Sayegh.

Reproduzido na Conti outra com autorização.

O Cine Sedes Jung e Corpo é uma atividade extracurricular do curso Jung e Corpo: Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

É um evento gratuito e aberto ao público geral organizado pelos professores do curso em conjunto com ex-alunos e ocorre todas as últimas sextas-feiras dos meses letivos do curso.

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Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae e em Gerontologia pelo HSPE. CRP: 06/77338