Vanelli Doratioto

O Quarto de Jack, Os Outros e Educação, quando o cinema fala ao coração

Quando assistimos a um filme quase sempre não imaginamos que existe por trás da história muito mais do que está sendo contado.

Podemos assistir ao delicado “O Quarto de Jack” e não imaginarmos que o filme não trata apenas da vida de uma mãe sequestrada e seu filho, mas de cativeiros emocionais nos quais muitos de nós vivemos diariamente.

Podemos assistir aos “Os Outros” e não nos darmos conta de que ele trata simbolicamente dos danos causados pela superproteção materna aos filhos.

Ou ainda passar os olhos por “Educação” e não perceber que o filme nos conta que não só coisas são roubadas, mas também pessoas, falando do ponto de vista emocional.

Aqui faço uma breve análise psicológica desses três ótimos filmes que parecem óbvios, mas que estão muito longe disso!

1. O Quarto de Jack, 2016 (Na Netflix)

Sinopse: Joy (Brie Larson) e seu filho Jack (Jacob Tremblay) vivem isolados em um quarto. O único contato que ambos têm com o mundo exterior é a visita periódica do Velho Nick (Sean Bridgers), que os mantém em cativeiro. Joy faz o possível para tornar suportável a vida no local, mas não vê a hora de sair dali. Para tanto, elabora um plano em que, com a ajuda do filho, conseguirá enganar Nick e retornar à realidade. O filme pode ser facilmente encontrado na internet.

Você pode até mesmo imaginar que esse filme trata de uma mulher que teve a infelicidade de encontrar um sequestrador em seu caminho, mas esse filme fala de muito mais que isso. O Quarto de Jack fala da caverna de Platão e de como é estar e sair dela.

Joy foi sequestrada e dentro de um quarto minúsculo tenta criar, da forma mais saudável possível, o seu amado filho. Joy não é livre. Seus olhos mal conseguem tocar as nuvens do céu pela diminuta janela do teto. Joy é vítima de uma situação deveras abusiva que se perpetua por longos anos. Em sua cabeça passa então a figurar o mundo hipotético que existe lá fora. A casa de infância imaculada, os pais felizes, um mundo externo amistoso em contraponto ao mundo de tormentos experimentado todos os dias.

Joy está na caverna de Platão. Acorrentada por um homem abusivo em uma situação angustiante, mas ciente de que precisa sair.

O quarto é uma metáfora da caverna e a caverna é o lar de um número considerável de pessoas. Não percebemos, mas muitos estão presos, por opção ou não, em cativeiros emocionais.

Quando Joy sai do quarto ela se encanta com a liberdade, mas logo descobre que o mundo pós-caverna muitas vezes dói e sangra. Sua família de infância está desintegrada e o mundo não é tão amistoso quanto ela pensava. Joy tem um choque de realidade.

Sair da caverna não é algo sossegado. Sair da caverna implica ver as coisas de outra forma, implica deixar as certezas por caminhos quase sempre incertos. Sair da caverna implica, muitas vezes, sentir dor, mas mesmo assim ser incapaz de ficar.

Notem que ao voltar ao quarto Joy e o filho acham o quarto pequeno demais. Apesar da realidade, por vezes, doer, quem sai da caverna não consegue mais voltar a ela, felizmente.

2. Os outros, 2001 (Na Netflix)

Sinopse: Durante a 2ª Guerra Mundial, Grace (Nicole Kidman) decide se mudar, juntamente com seus dois filhos, para uma mansão isolada na ilha de Jersey, a fim de esperar que seu marido retorne da guerra. Como seus filhos possuem uma estranha doença que os impede de receber diretamente a luz do sol, a casa onde vivem está sempre em total escuridão. Eles vivem sozinhos seguindo religiosamente certas regras, como nunca abrir uma porta sem fechar a anterior, mas quando eles contratam empregados que quebram essas regras, imprevisíveis consequências acontecem. O filme está na Netflix.

Os Outros é um ótimo suspense (um pouco assustador sim – tenho que admitir), mas um filme profundamente psicológico e muito bem dirigido por Alejandro Amenábar.

Simbolicamente o filme trata da superproteção materna e das consequências psicológicas dela sobre os filhos. Grace é uma mãe controladora e superprotetora.

Ela acredita que tudo que vem de fora é ruim e prejudicial às crianças. Ela pensa que até mesmo a luz do sol pode matar seus filhos. De acordo com ela a luz pode fazê-los sufocar, dentre outras coisas. Nesse ponto é muito bom lembrarmos da célebre frase de Freud na qual ele afirma: Quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo. A luz não os sufocará, mas ela sim.

A escuridão da casa remete a um estado de perpétuo medo e assombro. Até mesmo a luz artificial, que poderia indicar a clareza de ideias e a abertura às mudanças é negada. O fato das portas não ficarem abertas impede que o ar corra livre pela casa. A casa é uma prisão. A superproteção materna é uma prisão emocional que incapacita os próprios filhos.

O marido que desaparece pode também indicar o esquecimento do cônjuge ou o distanciamento dele, algo que pode acontecer quando há uma conduta superprotetora, como a da personagem principal.

Os empregados são “os outros”. O mundo é visto como “os outros”. “Os outros” são aqueles que estão contra Grace. A personagem pensa assim. Na verdade, “os outros”, nesse filme, são aqueles que trazem a verdade e a clareza de ideias. São os que têm coragem de tirar as cortinas e de apontar a luz da verdade.

3. Educação, 2010

Sinopse: Jenny Carey (Carey Mulligan) tem 16 anos e vive com a família no subúrbio londrino em 1961. Inteligente e bela, sofre com o tédio de seus dias de adolescente e aguarda impacientemente a chegada da vida adulta. Seus pais alimentam o sonho de que ela vá estudar em Oxford, mas a moça se vê atraída por um outro tipo de vida. Quando conhece David (Peter Sarsgaard), homem charmoso e cosmopolita de trinta e poucos anos, vê um mundo novo se abrir diante de si. Ele a leva a concertos de música clássica, a leilões de arte, e a faz descobrir o glamour da noite, deixando-a em um dilema entre a educação formal e o aprendizado da vida.

O filme Educação é um filme surpreendente, no meu ponto de vista. Nele conhecemos a jovem Jenny, uma jovem que sonha com uma vida adulta diferente da vida tediosa de seus pais. Então ela, em um terrível acaso do destino, conhece David, um psicopata gentil e delicado que a vê não como uma bonita moça, mas um objeto a ser roubado. Nem só objetos e bens podem ser roubados, uma pessoa também pode ser levada.

David é um golpista. Ele rouba coisas (para ele coisas e pessoas têm o mesmo peso) que acredita merecer e que, na cabeça dele, estarão muito bem em suas mãos. Rouba quadros de velhinhos e filhas de famílias tradicionais. Leva de cada lugar o que há de mais valioso. Jenny não é a primeira, nem a última a ser roubada.

O interessante em Educação é que David ilude as pessoas com seus próprios desejos. Como se ele os pudesse adivinhar e realizar. David trabalha com a tentação que existe em cada ser humano e assim ele rouba sem ser percebido, quase que com o consentimento da vítima. Reparem ao assistirem ao filme na conduta dos pais com relação a ele. David, sabe quais chaves usar para destrancar todas as portas sentimentais, diferente do jovem pretendente da filha que no começo do filme se senta à mesa e é massacrado pelo pai de Jenny.

O filme é um alerta e trabalha belamente com a ideia de que não só o que é material pode ser levado. Muitas pessoas são ludibriadas sentimentalmente, se deixam levar literalmente e, quando descobrem, um grande estrago já foi feito.

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Vanelli Doratioto

Vanelli Doratioto é especialista em Neurociências e Comportamento. Escritora paulista, amante de museus, livros e pinturas que se deixa encantar facilmente pelo que há de mais genuíno nas pessoas. Ela acredita que palavras são mágicas, que através delas pode trazer pessoas, conceitos e lugares para bem pertinho do coração.

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