Por Alan Lima
As histórias mais antigas da literatura mundial, eram transmitidas acompanhadas de algum arranjo. Dessa forma seus autores conseguiam propagar um enredo bastando alguns versos e batidas.
Separamos cinco músicas modernas que são espécies de contos musicados.
Vale gastar ouvido com mais uma playlist do Conti Outra.
Geni e o Zepelim, Chico Buarque
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Co’os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo – Mudei de idéia
– Quando vi nesta cidade
– Tanto horror e iniqüidade
– Resolvi tudo explodir
– Mas posso evitar o drama
– Se aquela formosa dama
– Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
– e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Dezesseis, Legião Urbana.
João Roberto era o maioral
O nosso Johnny era um cara legal
Ele tinha um Opala metálico azul
Era o rei dos pegas na Asa Sul
E em todo lugar
Quando ele pegava no violão
Conquistava as meninas
E quem mais quisesse ver
Sabia tudo da Janis
Do Led Zeppelin, dos Beatles e dos Rolling Stones
Mas de uns tempos prá cá
Meio sem querer
Alguma coisa aconteceu
Johnny andava meio quieto demais
Só que quase ninguém percebeu
Johnny estava com um sorriso estranho
Quando marcou um super pega no fim de semana
Não vai ser no CASEB
Nem no Lago Norte, nem na UnB
As máquinas prontas
Um ronco de motor
A cidade inteira se movimentou
E Johnny disse:
“- Eu vou prá curva do Diabo em Sobradinho e vocês ?”
E os motores sairam ligados a mil
Prá estrada da morte o maior pega que existiu
Só deu para ouvir, foi aquela explosão
E os pedaços do Opala azul de Johnny pelo chão
No dia seguinte, falou o diretor:
“- O aluno João Roberto não está mais entre nós
Ele só tinha dezesseis.
Que isso sirva de aviso prá vocês”.
E na saída da aula, foi estranho e bonito
Todo o mundo cantando baixinho:
Strawberry Fields Forever
Strawberry Fields Forever
E até hoje, quem se lembra
Diz que: “Não foi o caminhão”
Nem a curva fatal
E nem a explosão
Johnny era fera demais
Prá vacilar assim
E o que dizem é que foi tudo
Por causa de um coração partido
Um coração
Bye, bye Johnny
Johnny, bye, bye
Bye, bye Johnny.
A chegada de Raul e Lampião no FMI, Tom Zé.
É Raul, Raul, Raul,
É Raul Seixas, é Lampião
Chegaram no FMI
Que nem tentou resistir
É Raú, Raú, Raú,
Lampião não anda só
Trouxe Deus e o diabo
Raul, a terra do sol
Lampião com o clavinote
Raul trouxe o Ylê Ai Ê
Tiraram os colhões do rock
Enrabaram o iê-iê-iê.
Chegaram na Casa Branca
Os dois de carro-de-boi
Tio Sam fugiu de tamanca
Ninguém viu para onde foi
Wall Street fechou
E a ONU não deixou pista
O presidente jurou
Que sempre foi comunista
Mano Brown disse a Raul
O dinheiro a gente investe
No Banco Carandiru
Xingu, favela e Nordeste
Todo-poderoso e rico
O grande senhor dali
Cagou-se, pediu pinico
Aflito, fora de si
Pois o FMI
Viu que não tinha mais jeito
E entregou todo o dinheiro
Para o pobre dividir
E o mundo se viu diante
De grande felicidade:
Trabalho pra todo o dia
Comida pra toda a tarde
Mas entre os países pobres
Não houve fazer acordo
Para dividir os cobres
E a guerra pegou fogo
Marvin, Titãs
Meu pai não tinha educação
Ainda me lembro, era um grande coração
Ganhava a vida com muito suor
Mas mesmo assim não podia ser pior
Pouco dinheiro pra poder pagar
Todas as contas e despesas do lar
Mas Deus quis vê-lo no chão
Com as mãos levantadas pro céu
Implorando perdão
Chorei, meu pai disse: “Boa sorte”,
Com a mão no meu ombro
Em seu leito de morte
E disse
“Marvin, agora é só você e
não vai adiantar
Chorar vai me fazer sofrer”
Três dias depois de morrer
Meu pai, eu queria saber
Mas não botava nem um pé na escola
Mamãe lembrava disso a toda hora
Todo dia antes do sol sair
Eu trabalhava sem me distrair
As vezes acho que não vai dar pé
Eu queria fugir, mas onde eu estiver
Eu sei muito bem o que ele quis dizer
Meu pai, eu me lembro, não me deixa esquecer
Ele disse
“Marvin, a vida é pra valer
Eu fiz o meu melhor
E o seu destino eu sei de cor”
E então um dia uma forte chuva veio
E acabou com o trabalho de um ano inteiro
E aos treze anos de idade eu sentia
todo o peso do mundo em
minhas costas
Eu queria jogar mas perdi a aposta, e
Trabalhava feito um burro nos campos
Só via carne se roubasse um frango
Meu pai cuidava de toda a família
Sem perceber segui a mesma trilha
Toda noite minha mãe orava
“Deus, era em nome da fome
que eu roubava”
Dez anos passaram, cresceram
meus irmãos
E os anjos levaram minha mãe
pelas mãos
Chorei, meu pai disse: “Boa sorte”
Com a mão no meu ombro
Em seu leito de morte
Ele disse
“Marvin, agora é só você
E não vai adiantar
Chorar vai me fazer sofrer”.
“Marvin, a vida é pra valer
Eu fiz o meu melhor
E o seu destino eu sei de cor”
Desaparecido, O Terno.
Minha vida sempre foi tranquila
Não tem do que reclamar
Tenho uma família, bons amigos
Algo pra chamar de lar
E eu aqui fazendo vinte anos nunca ia imaginar
Que uma ligação misteriosa a minha vida ia mudar
Nos anunciados de desaparecidos
Viram o meu rosto no jornal
Alguém ligou
Pra procurar
Ver se era eu
Fiquei sem entender
Depois desse acontecimento
Eu comecei a investigar
Sobre a minha origem
E a origem dos que dizem ser meus pais
Resolvi chamar os dois na sala pra pedir explicação
Explicar o significado do retrato em questão
Sei da verdade e dessa novidade
Juro que não sei o que pensar
Pensar de mim
Quem são vocês?
Da onde eu vim?
O que eu faço aqui?
“Filho, como sabe sou cientista
Não quero te apavorar
Numa experiência que eu fazia
Exatos vinte anos atrás
Sequestrei um garoto perdido que eu encontrei por aí
Pra reconstruir o filho que eu com a sua mãe perdi”
Escandalizado
O garoto foi criado
Como um tipo de um frankenstein
Como um boneco
De um casal
Reagiu mal
Partiu pra não voltar
Os pais procuraram sem sucesso
Ele nunca mais voltou
“A verdade foi demais pra ele
Bem, por que você contou? ”
Dizem que até hoje o cientista sai vagando por aí
Atrás de um novo garotinho pra quem sabe conseguir
Ciar um filho
Igual àquele filho
Que criou igual a um filho seu
No desespero doentio
De quem não sabe
Enfrentar o vazio
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