Uma história interessante aconteceu comigo logo que me mudei para Montevidéu, há quase um ano, em busca de uma vida mais plena. Precisei ir a um quiosque para comprar algumas coisas. Aqui, um “kiosco” é onde se compra material de papelaria, guloseimas, pequenas bugigangas e também onde se joga em alguns tipos de loterias. Ao chegar na lojinha, um senhor de bem com a vida me atendeu com um sorriso nos rosto. Enquanto eu o aguardava a arrumar minhas compras, reparei no seguinte cartaz na porta:
Horário de funcionamento:
Abro quando chego
Fecho quando vou embora
Se você veio até aqui e a porta estava fechada
é porque não coincidimos
Simples assim! Viver num país diferente chacoalha as nossas crenças. Temos que aprender a nos adaptar e entender como funciona a cultura local. Alguns detalhes fazem muita diferença. As comparações com o lugar de origem, no caso, o Brasil, são inevitáveis. E comparações, quando feitas sem preconceitos, ensinam muito, não só sobre um novo lugar, mas também sobre de onde viemos.
Algumas diferenças que constatei foram marcantes, e me ensinaram muito sobre o Brasil, sobre o povo brasileiro e, em alguns casos, sobre mim mesmo:
1) O Brasileiro é feliz por fora e triste por dentro
O uruguaio é quase o contrário: é triste por fora, e orgulhoso por dentro. Na verdade, o que chama a atenção no povo uruguaio é que eles têm uma profundidade maior ao lidar com sua própria vida. As conversas ultrapassam o clássico:
– “Oi tudo bem?”
– “Tuuudo”
Aqui, geralmente, existe um “porquê” profundo nas respostas. Os problemas pessoais são expostos sem tantos melindres. Isso faz com que haja uma conexão mais verdadeira entre as pessoas. Tipo: -“Entendo seu problema. Também passo por isso com minha família…”
Ao contrário, no Brasil, somos “domesticados” a estar sempre felizes. Como isso quase nunca é verdade, as conversas se tornam superficiais. Fala-se sobre o clima, sobre os assuntos que viralizaram na internet, sobre o resultado do último jogo, fala-se sobre política de forma muito superficial. Fala-se pouco sobre a vida e seus problemas. Tenho a impressão que os brasileiros preferem guardar seus problemas para si. E quando se guarda muitos problemas no peito, a gente sente um nó danado na garganta.
2) O Brasil é o país das contradições
O Uruguai é um país de um povo conservador e levemente machista, mas que possui uma legislação de vanguarda em temas como casamento gay e consumo de maconha, para citar alguns exemplos. Parece incoerência, não? Um pouco.
Mas quando se trata de contradições, o Brasil é insuperável. Vendemos ao mundo uma imagem de um país multicultural, aberto às diferenças…humm, nem tanto… Aqui no Uruguai, por exemplo, um beijo no rosto indica apreço pela outra pessoa. Às vezes, ainda me surpreendo quando um homem barbado me cumprimenta com um beijo no rosto. Se fosse no Brasil, vocês já sabem o que iam dizer (ou pelo menos pensar), como se carinho e respeito definissem orientação sexual…
É bastante paradoxal, mas o Brasil é liberal, porém preconceituoso; é rico, porém pobre… As contradições são tantas que, até no nível pessoal elas e manifestam. Um típico brasileiro é, ao mesmo tempo, altruísta e egoísta: -“Sou a favor de compartilhar, desde que não mexam no que é meu!”.
3) O Brasileiro é individualista…
Aliás, o brasileiro é bastante individualista. Vive num sistema de convivência social único, em que cada um parece ter uma justificativa pertinente e razoável para não seguir as regras que deveriam ser aplicadas a todos. Claro que isso, às vezes, provoca o caos! O Uruguai não chega a ser uma Alemanha, onde o que é coletivo é profundamente respeitado (se não por bom-senso, por leis rígidas), mas o senso coletivo e do bem comum é maior do que no Brasil.
4) O Brasil é um país mal-educado
No Uruguai, todos escutam rádio. Mas não escutam só música. Ao contrário. Escutam noticiário e programas de debates que, para mim, são intermináveis. O rádio tem uma vantagem muito grande sobre os outros meios de comunicação em massa: permitem a reflexão e o uso da imaginação. A informação não chega pronta, mastigada e contaminada. É necessário digerir o que se escuta. Não sei o que é causa ou o que é consequência, mas o fato é que o uruguaio, ao contrário do brasileiro, foi educado a pensar mais.
Já escrevi como o sistema educacional brasileiro mina o futuro de nossos jovens. A educação pública no Uruguai não é livre de críticas e não está nos seus melhores dias. No entanto, e para não me estender demais, acho que é suficiente dizer que, aqui, cada aluno do ensino fundamental recebe um computador portátil, que pode levar para casa, e cada escola possui acesso à internet.
Acredito, no entanto, que o fato do uruguaio “pensar mais” não está relacionado à educação formal (a da escola), mas à educação informal: aquilo que aprendemos na família e no convívio social. É duro admitir, mas o Brasil é um país mal-educado nas duas “educações”. Essa diferença é notada claramente nas relações sociais, no restaurante, no ônibus, nos serviços públicos em geral, onde cortesia, atenção e qualidade são quase uma regra.
5) O Brasil é um país sem memória
Neste caso, não é lá uma descoberta muito grande. É só uma constatação de algo que todos já sabem. No Uruguai é o oposto. Parece incrível, mas a vitória sobre o Brasil na copa de 50 ainda está na boca do povo. Existe um carinho e respeito muito grande ao passado e às conquistas históricas. No âmbito político, o período da ditadura militar ainda é sentido pelas pessoas e faz parte do presente. Ao contrário, no Brasil, há quem defenda seriamente a tomada do poder pelos militares. Se não é falta de memória, é alienação, o que se enquadra no item anterior.
Talvez um meio termo entre memória e esquecimento seja o mais adequado aos dois países… Não sei. O fato é que existem diferenças marcantes quando o tema é “memória” e no que isso implica sobre as reflexões que fazemos sobre o passado e o futuro.
6) O Brasileiro é afortunado…mas não sabe
É difícil descrever o que senti quando andei pelas ruas de Montevidéu no primeiro dia quente depois de um inverno longo e rigoroso. Foi uma espécie de alívio misturado com alegria. O sol que aquecia a pele finalmente venceu a batalha contra o vento fresco da manhã. Aquele passeio me fez entrar num estado de êxtase. O que eu banalizava em Brasília (um clima agradável o ano inteiro) era o que eu mais desejava depois de 5 meses de frio. Tem coisas que a gente só valoriza quando perde… Esse período difícil com tanto frio seguido de um dia agradável me fez refletir: acho que um inverno rigoroso faria bem ao Brasil. Não no sentido literal, mas no metafórico.
Brasileiro adora reclamar de boca cheia. Viajei ao Brasil no ano passado, no auge da crise “socio-econômica-politica-cultural”. O que encontrei foram aeroportos lotados para voos nacionais e internacionais, restaurantes sempre cheios (comer fora é uma das primeiras coisas que se corta em tempos de crise), carros novos nas ruas cada vez mais engarrafadas…
Outra área em que é fácil perceber a bem-aventurança do brasileiro é na alimentação. A alimentação aqui no Uruguai é difícil. Falta variedade, tempero, e a comida é cara. O Brasileiro tem acesso à comida nutritiva, variada, saborosa e barata (sim, eu sei que a inflação aí está “pegando”). Brasileiro come bem o ano inteiro. Mas, ao voltar da feira ou do supermercado, não se dá conta disso. Como não se dá conta, volta para casa reclamando do governo que não controla a inflação, porque também não consegue perceber que a qualidade e preço “baixo” na sua alimentação se deve a um investimento governamental numa das maiores e melhores empresas de pesquisa agropecuária do mundo (Embrapa). Uma empresa pública de excelência que, não importa o governo, seja ele ditatorial, do PSDB e do PT, sempre foi valorizada. Sem falar de um dos melhores sistemas de Extensão do mundo que possibilita que o pequeno produtor brasileiro leve comida à mesa de todas as classes sociais.
Seja por desígnio divino ou por esforço social coletivo, os exemplos são vários. Se você não consegue pensar em nenhum, talvez faça parte dos que são afortunados… mas não sabem.
7) O Brasil é um país imaturo
O ano de 2015 foi particularmente duro com Brasil. Olhar tudo de fora me permitiu ver as coisas com certa imparcialidade. O que vi daqui foi uma crise quase incompreensível que abateu o país. Um nível de histeria desproporcional à realidade. As pessoas, não importa muito o lado, pareciam ter perdido completamente a lucidez.
Martin, meu filho, completou dois anos de idade aqui Uruguai. Ele está numa fase de testar todos os limites. Com sua picardia ímpar, nos provoca quase a todo instante, só para ver até onde pode chegar. As vezes (muitas vezes, na verdade) temos que colocar limites. Dizer um não, firme e sério (embora ele quase sempre consiga nos fazer rir no meio da bronca!).
Olhando de fora, tenho a sensação de que o Brasil e particularmente sua democracia são como Martin: uma criança. As pessoas estão sempre testando os limites: da polícia, do governo, dos adversários políticos, ou até do vizinho. Testar os limites de forma madura é importante para avançar, inovar, evoluir, sair da zona de conforto. Mas testar dos limites como criança é outra coisa. Testar limites assim é coisa de gente que não consegue se colocar no lugar do outro que, como crianças, precisam de um pai para orientar e dizer não.
Há pouco mais de uma década, o Brasil fez uma escolha importante: diminuir as diferenças sociais. Para tanto optou por um caminho de inserção econômica (em vez do caminho da inserção pela cidadania). Isso deu margem ao surgimento de conflitos entre a classe média já estabelecida e a nova classe média. Na minha modestíssima opinião, essa é a origem maior da crise. São como duas crianças brigando: O irmão mais novo (a nova classe média) quer tudo. O irmão mais velho (a classe média já antes estabelecida) tudo lhe nega.
Tentando ser mais otimista, talvez o Brasil seja como um adolescente, que tanto anseia pela transformação e pela vida adulta, mas não consegue conviver bem com o processo de mudança, que é longo e cheio de obstáculos internos.
O lado bom é que as crianças e adolescentes crescem!
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