Muitos são aqueles que, em Moçambique, se dedicam à Literatura. Mesmo em meio a dificuldades para a publicação de suas obras, grandes poetas dão voz à poesia moçambicana, como bem poderemos conferir nos versos seguintes.
As obras de arte que intercalam as poesias são de Malangatana, artista plástico e poeta moçambicano reconhecido internacionalmente por suas obras que englobam trabalhos de desenho, pintura, escultura, cerâmica, murais, poesia e música.
AFORISMO
Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.
José Craveirinha
Um homem nunca chora
Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem!
José Craveirinha
Moçambique
Quando me sento descalça
sobre o sapato do menino pobre
que me enche o pé
muito mais que outro qualquer
me lembro que existir
não é sozinha
é com toda gente.
E me lembro
que tenho de embebedar-me de ti
Moçambique
Porque tenho saudades de mim
Tania Tomé
ESTIAGEM
Com o peito em estiagem
chove choro materno .
Na boca ciosa do nado
minhoca o seio murcho.
Nem suor nem ar
lhe salgam a fome.
Amamentar-se só na doçura
das lágrimas da mãe.
Helder Faife
És a vela içada
És a vela içada
a quilha que contorna
a carne das águas.
És a tempestade
a chuva premeditada
e eu o náufrago
que não se permite afogado.
Eduardo White
IDENTIDADE
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
sou o vento que a desgasta
sou pólen sem insecto
e areia sustentando
o sexo das árvores
Existo, assim, onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
receando a esperança do futuro
No mundo que combato
morro
no mundo por que luto
nasço.
Mia Couto
VERDADES QUE JAMAIS REVELASTE
Olho nos teus olhos mãe, vejo para além dos que me dizes
Mentes-me, sinto, mesmo assim acredito
O que seria do mundo se todas as verdades viessem a branco? Catástrofe, uma catástrofe universal
O lar é pilão, dizes-me tu com os olhos carregados de lágrimas
Vejo mistérios assombrosos nessas palavras
Um silêncio ensurdecedor sobrevoa o meu ingênuo rosto
Olho para ti mãe, o teu rosto segreda-me enigmas que a sua boca recusam-se a dizer
No seu rosto, dilemas tatuados
Hás de servir o teu homem, todos os dias da tua vida
Embora estas palavras fossem doces, no seu íntimo levavam decerto uma agonia sem sujeito
Uma aflição sem (desa) sossego
Se o lar é pilão
Se vou servir o meu homem, todos dias da minha vida, por que choras mãe?
Por que te empalideces, por quê?
Quantas verdades pernoitam no teu vazio?
Hoje, hoje, percebo a razão das lágrimas que te desciam o rosto, do corpo franzido que te cobre a pele, das verdadeiras razões que te calejaram o coração, a alma.
Nada mais tenho para acreditar, senão a realidade que me circunda.
Inútil é ser mulher, o ser a quem recai toda a desgraça do mundo.
Hera de Jesus