Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente, disse o filósofo e educador indiano Jiddu Krishnamurti. E para pensadores do calibre de Guy Debord, Sam Harris, Adam Curtis, Zygmunt Bauman, Joel Birman, Gilles Lipovetsky e David Foster Wallaceestamos, de fato, em uma sociedade adoecida.
Mas se esses pensadores apresentam os sintomas de nossa enfermidade coletiva, há alguma forma de iniciarmos o processo de cura?
A verdade é que muitas pessoas atribuem as causas dessa doença a essa ou aquela característica estrutural de nossa sociedade: ora é a tecnologia, ora é o capitalismo, ora é a publicidade. Mas a experiência histórica demonstra que sempre que tentamos alterar as grandes estruturas sociais, além de muita violência e sofrimento, o que obtemos são novas e diferentes estruturas sociais que produzem o mesmo nível de adoecimento de toda a sociedade.
Talvez essa abordagem seja o equivalente a culpar a garganta pela irritação que sentimos nela quando ficamos gripados, ou afirmar que a causa da enxaqueca seja a existência da cabeça. A origem da enfermidade, na verdade, é sempre outra, e de natureza microscópica: assim como no caso da gripe a origem esteja em um vírus, a causa da enfermidade social talvez resida na forma como cada ser humano está vivendo sua vida individualmente.
Haveria, portanto, comportamentos virais na conduta humana que criam o adoecimento da sociedade? E, nesse caso, podemos nos transformar, de hospedeiros desse vírus, em anticorpos defensores dessa mesma sociedade, sem a necessidade de alterar as suas estruturas? Nesse caso, a nossa saúde comportamental teria o poder de induzir a saúde de toda a comunidade.
Sete grandes intelectos apresentaram sete características de um ser humano equilibrado e saudável. E talvez desenvolver em nós essas sete características seja o início do processo de cura coletiva.
David Foster Wallace proferiu em 2005 um discurso para uma turma que colava grau no Kenyon College. Esse discurso, que passou a ser conhecido pelo título “Isso é Água”, tornou-se talvez a obra mais popular e divulgada de Wallace nas redes sociais. E a essência de sua mensagem trata da importância de aprendermos a pensar.
“Pensar”, algo que consideramos uma atividade automática e natural, para Wallace é um processo a ser aprendido e praticado com consciência e treino, principalmente durante as atividades cotidianas. Pensar seria, na verdade, uma prática na qual podemos ser bem sucedidos ou falhar vergonhosamente, e desse resultado dependeria nossa realização pessoal.
A maior parte das pessoas deixa seu fluxo de pensamento conduzir-se aleatoriamente, à medida em que associações e lembranças lhe ocorrem. Numa sociedade que nos empurra para o automatismo e a pressa, em que ficamos presos em engarrafamentos e longas filas de supermercado, pensar dessa forma nos torna vítimas fáceis da manipulação e do controle externo. A “bovinização” humana é consequência de nossa inaptidão para pensar de um modo mais consciente e atento.
Mas pensar não se confunde com capacidade intelectual. Como Wallace deixa claro em seu discurso, indivíduos de invejável formação acadêmica podem ser completamente incompetentes nessa atividade, pois ela não implica apenas no raciocínio abstrato e teórico: pensar implica em analisar continuamente os pressupostos pessoais e emocionais sobre os quais estruturamos a nossa vida, a ponto de conseguirmos enxergar coisas tão óbvias que não as percebemos – tal como os peixes não percebem a água em que estão submersos.
Quando Wallace ressalta a importância de aprendermos a pensar, ele está falando daautoconsciência, daquela capacidade de pensarmos sobre nossos pensamentos, de questionarmos os pressupostos de nossas escolhas e de nossos sentimentos em relação ao mundo, adotando uma perspectiva situada além do protagonismo, da visão segundo a qual nós somos o centro dos eventos que nos ocorrem.
O filósofo e psicanalista Erich Fromm publicou em 1956 sua obra A Arte de Amar. Segundo propõe nesse ensaio, o amor não seria um sentimento que vivenciamos com passivo arrebatamento: o amor seria, antes de tudo, uma prática a ser exercida com plena consciência. Mais ainda, é uma prática que precisa ser aprendida até o ponto em que nos tornemos artistas em sua expressão e desenvolvimento.
Fromm equiparava o amor, assim, a uma forma de arte, seja o amor entre um casal, o amor entre familiares, o amor entre os amigos e o amor pelo próximo. E como aprendemos uma habilidade artística? “O processo de aprendizado de uma arte pode ser dividido em duas partes: em primeiro lugar, o domínio da sua teoria; em segundo, o domínio da sua prática.” Mas Fromm ainda inclui um terceiro elemento: ao lado da teoria e da prática, a maestria em qualquer arte deve ser, para o artista, uma questão prioritária em sua vida.
Vivemos em uma cultura que hipervaloriza o amor romântico de forma idealizada e às vezes irreal, algo característico de indivíduos infantilizados. Porém, Fromm entendia que a real satisfação no amor romântico não pode ser atingida sem a capacidade de amarmos também a todas as outras pessoas ao nosso redor. Mais ainda, o verdadeiro amor exige humildade genuína, fé na natureza humana e disciplina emocional. E “numa cultura em que essas qualidades são raras, alcançar a capacidade de amar continua algo também raro”.
A construção de uma sociedade mais saudável depende, portanto, de que aprendamos não só a pensar, como propôs Wallace, mas também a amar, e como se fosse uma forma de arte.
Em 1946, Jean-Paul Satre publicou O Existencialismo é um Humanismo. Resultado de uma conferência que o filósofo deu no ano anterior em Paris, a obra resume a essência de sua concepção sobre a condição humana.
Para Sartre, o que nos diferencia dos outros seres é a natureza da nossa consciência, pois ao nascermos ela não está orientada para nada – os nossos objetivos na vida, o que iremos ser e fazer não estão predeterminados; são, ao contrário, coisas que apenas posteriormente tomarão forma, à medida em que recebemos impressões do mundo externo. Este é o sentido de sua frase “a existência precede a essência”: nós nascemos antes de nos definirmos enquanto seres humanos, pois a “natureza humana” e o “destino humano” não estão preestabelecidos pela natureza – são, antes de tudo, coisas que precisamos construir a partir de nossas ações e escolhas ao longo de nossas vidas.
Daí a importância de um homem comandar o seu destino. “O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”, afirma Sartre. O ser humano totalmente submetido à sociedade doente acredita que destino é algo que lhe acontece. Mas, na verdade, destino é algo que o ser humano constrói, e construindo esse destino é que o indivíduo cria a si mesmo, definindo sua própria natureza.
Com essa proposta, Sartre pretende afastar a ideia popular de que a sua filosofia é pessimista. Na verdade, ela é otimista e impulsiona o homem à ação. “O covarde se faz covarde”, enquanto “o herói se faz herói”, sendo que “existe sempre, para o covarde, uma possibilidade de não ser mais covarde”.
Porém, Sartre reconhece que a noção de que somos livres para construir nosso destino é tão desafiadora que muitos a consideram um fardo, um peso do qual buscam se livrar de todas as formas possíveis. E com isso abrimos as defesas imunológicas da sociedade ao ataque de agentes nocivos.
Toda vez que alguém deposita sua fé em uma doutrina espiritual segundo a qual forças insondáveis determinam o destino humano; toda vez que um indivíduo decide levar a vida “no piloto automático”, seguindo as regras sociais sobre o que ser e fazer sem questioná-las; toda vez em que alguém abdica de sua própria liberdade pessoal para tornar-se militante a serviço de uma ideologia ou líder político: em todas essas situações estamos comodamente abdicando de uma importante parcela de nossa autonomia, como uma espécie de preço que pagamos para viver sem a pressão da responsabilidade sobre nosso destino.
A maioria dos seres humanos ingressa na vida adulta e decide seguir o passo-a-passo tradicional que socialmente foi convencionado como certo e normal: universidade, trabalho, casamento, filhos, casa própria, aposentadoria e morte. Isso não é certo nem errado, o problema é fazer isso sem reflexão, somente por pressão social. Isso nos torna vítimas perfeitas dos aspectos mais adoecidos de nossa sociedade, como o hiperconsumismo. Num mundo enfermo, um indivíduo começa seu caminho em direção à cura quando reconhece que o seu destino é sua responsabilidade, e que precisa construir um projeto pessoal a respeito do que fará e de quem será na vida.
Viktor Frankl acrescentou um outro elemento nessa dinâmica do princípio do prazer e do princípio da realidade, de modo que podemos encarar sua proposta como um complemento, e não uma negação do que expôs Freud. Para Frankl, a vontade de agir e viver com um sentido é mais forte nos seres humanos que a vontade de obter prazer.
Isso explicaria, por exemplo, porque mártires aceitariam tormentos físicos e até mesmo a própria morte por se recusarem a abdicar de suas convicções políticas ou religiosas: antes de tudo, o ser humano busca não a satisfação de seus desejos, mas a devoção a uma vida com plenitude de sentido. E se essa plenitude de sentido tiver de ser confirmada ao preço dessa própria vida, em casos extremos tal sacrifício é aceito.
Dessa forma, a crise humana atual seria uma crise de vazio existencial. Inseridos em uma sociedade que não nos propõe um sentido e sequer valoriza a busca por um significado nas experiências humanas, substituímos neuroticamente essa aspiração fundamental pelo consumo irrefreado e pela espetacularização de nossas vidas.
É como estarmos em um palco no qual utilizamos recursos cênicos, iluminação colorida e efeitos especiais para disfarçarmos a total falta de um enredo.
Para Viktor Frankl, a vida de cada ser humano é uma jornada espiritual em busca da resposta à grande questão sobre o sentido dessa própria vida. Mas tal resposta não está pronta, esperando que a descubramos: ela precisa ser construída, e sua formulação não é feita por meio de explicações teóricas, mas por meio de atos concretos. Assim, o caminho para uma sociedade saudável dependeria de reconhecermos a importância de concebermos e implementarmos coletivamente um sentido para a existência humana.
Embora esteja em voga atualmente criticar as teorias de Freud, a verdade é que rejeitar integralmente suas ideias é tão tolo quanto abraçá-las como os dogmas de uma nova religião. Freud trouxe importantes contribuições para o atual entendimento da condição humana, embora tenha cometido, como qualquer um, seus equívocos (alguns dos quais posteriormente corrigidos pelos próprios teóricos da psicanálise).
E uma das principais de suas contribuições é a noção de que o ego humano está em constante relação com dois princípios fundamentais: o Princípio do Prazer e o Princípio da Realidade. O princípio do prazer consiste num mecanismo psíquico simples que faz o ego buscar o prazer de todas as formas e evitar o desconforto e a dor com todas as forças. Isso ocorre como um movimento que ignora as dificuldades e exigências do mundo real.
O princípio da realidade, por outro lado, também está relacionado com a busca de prazer pelo ego, mas em uma condição na qual as dificuldades e exigências da realidade são reconhecidas e aceitas, de modo que buscamos realizar o prazer e evitar a dor em uma constante relação com o mundo real e suas possibilidades efetivas.
De uma forma bem simplificada, imagine o princípio do prazer como uma criança mimada ao extremo, que “quer porque quer aquilo que quer”, e que não tem a mínima capacidade de aceitar ou sequer compreender as limitações do mundo real. Já o princípio da realidade é um indivíduo adulto e maduro o suficiente para entender que a realização de seus desejos demanda a constante tratativa com as exigências da realidade. São duas faces do nosso ego.
O ponto fundamental é que não há uma transição do princípio do prazer para o princípio da realidade. Ou seja, segundo Freud, o princípio da realidade (o indivíduo adulto e maduro), não substitui o princípio do prazer (a criança mimada e egoísta). Internamente, ambos coexistem, e sempre teremos um aspecto de nosso ego que busca o prazer de todas as formas, ignorando completamente as limitações da realidade. A questão é saber reconhecer essa característica de nossa mente e aprendermos a lidar de forma adequada com essa tendência humana.
Na sociedade atual, porém, temos adultos e jovens oriundos de famílias que não souberam impor os limites adequados, expondo gradualmente as crianças às demandas da realidade. Ao contrário, cada vez mais os pais adotam uma postura quase servil em relação a filhos mimados e despreparados para encarar o mundo real.
Assim, homens e mulheres crescem com a ilusão de onipotência e com a falsa impressão de que são especiais. Escravos da miragem de que seus desejos e sonhos serão satisfeitos sem esforço, quando isso não ocorre surge a tentação da desobediência da lei e da conduta antiética.
Como o princípio do prazer não encontra a contraposição eficiente do princípio da realidade, o resultado é uma sociedade composta por indivíduos egoístas, incapazes de lidarem com frustrações diárias e desprovidos da determinação necessária para a concretização possível de seus sonhos. O caminho para uma sociedade mais saudável passa pelo desenvolvimento de uma relação mais madura com o princípio do prazer que está dentro de todos nós, contrabalançando-o com o princípio da realidade, de forma que desenvolvamos a capacidade de tolerar frustrações e de resistirmos à satisfação imediata de nossos desejos mediante atos impulsivos e antiéticos.
Reconhecer que precisamos aprender a amar e a pensar corretamente, bem como admitir que nosso destino e o sentido de nossas vidas não estão predeterminados, mas precisam ser diligentemente construídos por meio de nossos atos, exige um tipo muito particular de humildade: a capacidade de vivermos permanentemente na incerteza, com poucas convicções.
O filósofo, matemático e historiador britânico Bertrand Russell, em sua obraUnpopular Essays (Ensaios Impopulares), considerou a habilidade de conviver saudavelmente com a incerteza uma das maiores virtudes do ser humano. Essa aptidão seria o que impede um indivíduo de se tornar joguete nas mãos de crenças religiosas, ideologias políticas ou líderes messiânicos que nos prometem uma explicação totalizante para as maiores questões da complexa vida contemporânea.
“Ansiar pela certeza é algo inato na natureza humana, mas ainda assim é um grande vício intelectual”, escreveu Russell. O fundamentalismo (não só religioso, mas também político, em todas as suas facetas) tem por base uma certeza dogmática e inabalável, que retoricamente ou emocionalmente seduz os seus devotos.
Mas a incerteza não deve paralisar a ação, pois Bertrand Russell nos previne do perigo de os mais inteligentes abrirem espaço na vida pública a idiotas cheios de certezas equivocadas. “Agir com vigor, mesmo na falta de absoluta certeza”, mas mantendo um elemento de saudável dúvida, ainda que pequeno, em relação a cada assunto, é uma forma de evitar a um só tempo o radicalismo, o fundamentalismo, a alienação e o preconceito.
Para Nietzsche, filósofo alemão que antecipou muitas das questões que desafiam o ser humano na atualidade, conduzir o próprio destino com irresponsabilidade é abdicar da própria autonomia e ceder a algo ou a alguém uma parcela importante de nosso poder pessoal.
É que num mundo regido por relações de poder, deixar que convenções sociais ou forças políticas/religiosas decidam o nosso destino implica em abraçar uma espécie disfarçada e envergonhada de escravidão. Quando não assumimos a integral responsabilidade pelas escolhas que precisamos fazer, alguém as fará por nós, e sem dúvida o critério utilizado não será o nosso benefício.
Nietzsche, que na vida pessoal experimentou os sofrimentos de longos períodos de enfermidade, tinha um especial apreço pela metáfora do ser humano integralmente saudável. Estamos espiritualmente adoecidos ao vivermos em uma sociedade enferma, e o espírito livre desse estado de adoecimento inicia seu processo de recuperação da saúde seguindo uma terapia que Nietzche apresentou na sua obraAssim Falou Zaratustra em três etapas, que chamou de As Três Transformações.
Na primeira, ainda enfermo, o ser humano é como um camelo, um escravo que aceita todas as cargas impostas a si sem questionar. Na segunda fase, a do leão, o indivíduo passa a destruir seu condicionamentos limitadores de forma veemente, resgatando o controle de sua vida das mãos daquelas pessoas, doutrinas ou ideologias para as quais anteriormente havia entregado o poder sobre si mesmo. Nesse momento, a pessoa diz “não” à sua prisão. Por fim, na fase mais importante, o ser humano livre e autônomo começa a reconstruir-se com a ludicidade e a criatividade de uma criança. Nessa etapa, o indivíduo diz “sim” à sua vida.
Nesse roteiro em três partes, podemos perceber com clareza o papel da ironia. Ela exerce um trabalho destruidor e depurador de antigos condicionamentos sociais e crenças tradicionais. Assim, a ironia integra o “rugido do leão” que nos liberta da sujeição a uma visão do mundo obsoleta e supersticiosa. Mas, após essa etapa, a ironia pode deixar de ser parte do remédio para converter-se em veneno. O espírito irônico é corroído pela desconfiança e pela amargura, sendo incapaz de acreditar até mesmo em si mesmo e nas mais nobres aspirações humanas. Por isso, Nietzsche exortava: “não jogue fora o herói que há em sua alma, mantém sagrada a sua mais alta esperança!”
Essa é a razão de a metáfora da criança ser central na proposta terapêutica de Nietzche. Se o ser humano precisa aprender a conduzir seus pensamentos da melhor forma, como propõe Wallace, e se a natureza e o destino de um indivíduo são coisas que ele precisa construir a partir de seus atos e escolhas, como afirma Sartre, a atividade humana é, portanto, essencialmente criadora. E esse processo criação deve ser realizado com o mesmo prazer lúdico que uma criança tem ao brincar, com a mesma esperança e aspiração ao heroísmo que uma criança tem ao olhar seu futuro.
Victor Lisboa é editor de Ano Zero, colunista do Papo de Homem e autor do blog Minha Distopia. Escreve não por achar que tem vocação ou talento, e muito menos com a pretensão de dizer algo importante. O problema é de outra ordem. É descaramento, é o prazer de se deixar levar por uma compulsão. Isso porque, de todas as perversões toleradas em sociedade, a mais inofensiva é escrever. Deixem que abuse, portanto.
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