Por Josie Conti
PS: contém spoilers
Emocionada pela grandeza do trabalho. Foi assim que terminei de maratonar , em dois dias, “Maid”, a nova minissérie dramática de 10 capítulos que estreou na Netflix no último dia 01 de outubro.
Maid foi baseada no impactante best-seller autobiográfico intitulado ‘Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother’s Will to Survive’, no Brasil lançado como “Superação, Trabalho Duro, Salário Baixo e o Dever de Uma Mãe.”, de Stephanie Land.
Criada por Molly Smith Metzler e estrelada por Margaret Qualley, Maid conta a história de Alex, uma mãe de 25 anos que, após mais um episódio de violência do marido, sai de casa com a filha no meio da madrugada em busca de ajuda.
A minissérie é genial e muito sensível ao retratar algumas verdades avassaladoras sobre a violência doméstica:
1- Não é preciso que exista agressão física para que exista violência doméstica.
Após sua fuga, Alex tem dificuldades para compreender que, por nunca ter apanhado, sofria violência psicológica desde que ficou grávida. Seu companheiro bebia e, além de ameaças e frases pejorativas, arremessava coisas e até chegou a dar um soco na parede, mas nunca nela. Aos poucos, depois de receber um panfleto e ser encaminhada para um abrigo que recebia mulheres vítimas desse tipo de violência, ela finalmente conseguiu compreender que essa era a sua realidade. As agressões psicológicas, além de serem um estágio inicial que pode ser seguido de violência física em momentos posteriores, é tão violenta e destrutiva quanto as agressões físicas.
2- Não existe meritocracia simplesmente porque os direitos não são iguais!
A história de Alex tem como cenário os Eua, o país do sonho americano onde a ideia de que com esforço todos podem vencer é quase um pilar. Na realidade, entretanto, Alex, que se torna faxineira para sobreviver com a filha, não varre apenas a sujeira de cima do tapete, mas também revela a verdade escondida pelo sistema sob o tapete, pois ela é um exemplo de pessoa sem rede de apoio (ela não tem com quem contar). Ela tem uma filha, quase nenhum dinheiro, pois o único emprego para ela é do tipo exploratório (muito trabalho e salário baixíssimo). Assim, ela precisa de ajuda do governo para moradia, tickets alimentação e toda uma gama de assistência pública que é enfadonha, humilhante e burocrática. Alex é capaz, inteligente e trabalhadora. Ela, há 4 anos, passou na faculdade, mas não pode cursar. Ela é a prova de que não basta ter força de vontade para se dar bem quando tudo que ela tem ao seu redor é uma mãe bipolar com sintomas gravíssimos e sem tratamento, um pai ausente e ex-alcoolista, abusador e que não reconhece o abuso que Alex sofre- e o ex-marido, também abusador.
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3- Dificuldades para provar a violência psicológica
Assim como o assédio moral, a violência psicológica é uma violência difícil de provar para porque, na ausência de testemunhas, é uma violência que não deixa marcas no corpo. Assim, é importante que quem esteja passando por ela cerque-se de pessoas que possam comprovam os seus relatos. Boletins de ocorrência registrando danos ao patrimônio, como no caso do ex-marido de Alex que quebrava coisas e a ameaçava também podem são úteis. E, o mais importante: hoje ele não bate, mas ela vai ter que esperar que ele bata ou faça coisa pior? Alex não tinha como provar que falava a verdade, pois, como dito no item um, ela não sabia que sofria violência doméstica. Mas você que lê esse texto, se antes não sabia, agora sabe!
4- Por que essas mulheres voltam?
A série é magnífica ao ilustrar como muitas mulheres podem sair diversas vezes de casa (às vezes 5-7 vezes) até que sejam capazes de abandonar, definitivamente, o abusador.
Se, no cotidiano ouvimos de pessoas que não conhecem esse assunto a fundo que essas mulheres são “sem vergonhas”, “burras” ou mesmo que “gostam de apanhar”, na realidade encontramos pessoas que tiveram sua autoestima destruída ao longo dos anos (ao ponto de, como em um exemplo da minissérie, não conseguirem dizer qual é a sua cor preferida).
Vemos também mulheres que são totalmente dependentes financeiramente do agressor e que não possuem uma rede de apoio de amigos e familiares que as possam ajudar a “fugir” dessa situação. Vemos, ainda, o medo das ameaças constantes de que algo possa ser feito com elas, com seus filhos ou mesmo que o agressor possa atentar contra a própria vida.
Para além disso, muitas mulheres ainda sentem vergonha de se encontrarem em situações tão degradantes que tentam ocultar de familiares e amigos (às vezes até de si mesmas) o quanto aquela situação é grave. Como mostrado na minissérie, a cada vez que se sujeitam, sua energia viral fica mais fraca, assim como sua coragem de reagir. A cada fracasso, cresce uma ideia de que nunca serão capazes de sair daquele ciclo de abusos.
5- Codependência com o agressor
A codependência é um aspecto complementar ao tópico anterior, mas que merece um espaço só para si.
Maid explora os traumas de seus personagens. Ela tenta mostrar como determinadas coisas que acontecem na infância podem refletir na idade adulta. Ela retrata com clareza como nós tendemos a repetir essas histórias escolhendo, sem perceber, parceiros que são parecidos com aqueles que nos fizeram mal no começo de nossas vidas. Vejam, por exemplo, como o marido de Alex tinha inúmeras características similares ao de seu pai.
A série mostra como Alex foi negligenciada por seus pais ao ponto de inverter os papeis e se tornar responsável por sua mãe assim que teve idade mínima para isso. Durante toda a sua vida Alex não teve um minuto de paz com relação a sua mãe (codependência).
Pessoas que são sabem o que é amor podem confundir domínio com afeto. A pessoa que não se responsabiliza por seus próprios atos tende a responsabilizar o outro por suas escolhas ou não escolhas. Sean, o marido, culpava Alex por sua gravidez e a torturava por ter que se responsabilizar pela criança e mudar seus planos de vida. Depois a culpava por ter que trabalhar mais. Depois a culpava porque, se ela se separasse, ele não conseguiria deixar de beber. Também a culpou por não ter ereção com a outra namorada. Ou seja, enquanto ela se sujeitasse a esse discurso, ela seria refém da não responsabilização dele pela própria vida e a arrastaria para o abismo com ele.
Alex já tinha aprendido a ser codependente desde a infância, assim como sua mãe também o era com relação a homens abusivos. Esse era o único modelo que ela conhecia.
6- Sentimento de Impotência/paralisia
Quem sou eu quanto tudo o que eu faço é definido pelo outro, seja porque o outro mandou, desejou ou porque eu o temo?
Impotência frente ao marido
Impotência frente ao sistema- receber benefício como favor
Impotência de ser humilhada no trabalho e não poder reagir porque não existe opção
Impotência ter que se sujeitar a um subemprego (salários muito baixos destinados a quem não tem opção de escolha: pessoas na miséria, na maioria negros e imigrantes ilegais)
Impotência frente a falta de dinheiro
Impotência frente a um curso para mães ministrado por um homem
Impotência de não ter a quem recorrer e de não ter absolutamente nenhum exemplo a seguir
Impotência por não poder confiar em ninguém: mesmo um homem que parecia bom e a queria ajudar, queria algo em troca.
Impotência pela invisibilidade social: a fala da dona da empresa de limpeza sobre as faxineiras que podem ser trocadas sem que os patrões deem falta, mesmo depois de anos de trabalho.
7- Compreender a própria história para poder reagir
Enquanto falamos sobre algo que nos acontece damos sentido aquele relato. As histórias possuem começo, meio e fim. Quando nos colocamos na pele de seus personagens nós tentamos entender os motivos de suas escolhas, sentimos a dor do que lhes aconteceu, tentamos encontrar explicações e justificativas para as coisas que acontecem. Alex começou a fazê-lo enquanto escrevia. A escrita lhe fazia sentir viva. Através dela ela ressignificava a realidade e encontrava novos sentidos e formas criativas e possíveis de ver a vida.
Já Paula, sua mãe, interpretada por Andie MacDowell, mostra uma outra forma de lidar com a vida e as histórias. Como ela não suportava a dureza de sua vida, a ponto de ter um rompimento psicótico com a realidade, ela cria realidades paralelas onde o que acontece parece bonito, onde ela é protagonista, onde ela é amada. Talvez Paula opte (se é que existe qualquer tipo de opção nisso!) por ser uma figura quase caricata por saber que o tratamento para sua bipolaridade a fará encarar uma dor que ela não sabe se será capaz de aguentar. Certamente ela já deve ter tentado em outros momentos de sua vida e ainda não se sente pronta. Quanta dor existe em cada nova mentira que é criada.
Cada personagem conta uma história. O que os difere, entretanto, é o momento em que eles deixam de ser vítimas das repetições de suas famílias e do que aprenderam na infância para assumir o protagonismo. É uma escolha que abala todo o sistema, que torna a pessoa se torne desconhecida às vezes até para si mesma, é um caminho ainda não trilhado.
Nos apaixonamos por Alex porque ela tem muito de nós e de nossos buracos internos. Talvez nem todos nós tenhamos nos sentido miseráveis por não ter como nos alimentar para trabalhar (mas muitos também o tiveram), mas existem muitas formas de miséria inclusive, como a minissérie também mostrou, a miséria que também pode morar na riqueza.
Maid não romantiza a pobreza, ela apenas abre a porta de serviços que muita gente ainda mantém: ora ignorando os pobres em um capitalismo que só visa o lucro, ora ignorando os próprios pedidos de socorro.
Todas as imagens: divulgação Netflix