Chovia e não se importava, enquanto todos corriam buscando abrigo, se apertando embaixo das marquises, ela continuava sentada no banco da praça. Estava coberta das gotas que escorriam por seu corpo, com olhos perdidos no horizonte, a boca semiaberta com seu batom vermelho feito sangue, os cabelos despenteados, a camiseta ensopada, a bolsa no colo que carregava o maço de cigarros e um pequeno caderno de anotações. Era poetisa e leitora de si mesma.
Sempre sentiu enorme vazio e deslocamento, estava feito peça perdida de um quebra-cabeça chamado existência, uma dizima que a vida preferia arredondar. Pensou que os fantasmas eram assim e riu, pois as pessoas que disseram para ela não acreditar em fantasmas hoje não creriam nela. Pensou na sua existência, era excêntrica, praticava o exercício esquecido da reflexão, não tinha tempo para idiotices, carreiras imbecis, status e pessoas rasas. Desde muito cedo sabia que a vida era mais do que rótulos, produtos e transações. Desconfiava que a vida sempre escondia algo dela, igual aos mordomos em romances policiais clichês, e estava disposta a arrancar as respostas. E a vida sabendo disso a evitava.
Silenciou a mente dos barulhos interiores e ficou olhando ao seu redor. Observou as pessoas abrigadas nas marquises, o velhinho que usava uma capa de chuva com a expressão de pressa e passos lentos, os cavalheiros respeitáveis em seus ternos, eles tinham os olhos mergulhadores que exploravam o decote e o colo molhado da moça, que estava mais preocupada em proteger os seus cadernos, o menino com ar solitário com uma camiseta de uma banda que ela nunca tinha ouvido falar e suas tatuagens borradas. A chuva era um lembrete, ela mostrava o abismo que existia entre ela e os outros, não tinha o espirito aventureiro e nem vontade de saltar e alcança-los.
Levantou-se, caminhava devagar em direção a sua casa um apartamento alugado no centro. Pensava em alguma música da Elis, não pela letra em si, mas gostava da voz dela, aquela voz forte e doida, aquela voz que era um vazamento da alma. As dores são assim, a ferida abre ou o vaza o sangue ou a alma. A voz de Elis era um vazamento da alma, assim como o batom vermelho que usava todos os dias. Enquanto as pessoas associavam o batom com a mulher sensual que é, a verdade é que o batom que avermelhava os lábios era flor que brotou de toda a dor de sua alma. Era uma rosa dolorida e bela, e assim prosseguia andando devagar, bolsa no ombro, quadris deslizantes, com a flor rubra na boca querendo a voz de Elis.
Viu o velho prédio, abriu a porta e subiu pelas escadas, detestava elevadores e seus constrangimentos. Gostava de deslizar a mão direita pelo corrimão e se conectar a outras mãos que passearam por ali, estranha mania de se conectar a ausência das pessoas e não as pessoas.
E ria ao pensar que os objetos durariam muito mais do que ela e que na verdade eles são pontes imaginárias que ligam, e assim ela ia tocando os objetos e derramando vida neles, para que talvez algum dia alguém se conecte a ela.
Entrou em seu apartamento, deixou as roupas pelo chão, assim como já tinha deixado os sonhos, as palavras e as esperanças de plástico. Deitada em sua cama, olhava o teto cinza, de um dia cinza, como tantos dias cinzas que se repetem e que nos repetem.
A flor rubra sorriu perfumando o quarto com alma.