Por Paula Peregrina
Desde livros filosóficos e científicos aos discursos do senso comum, nas corriqueiras queixas do dia a dia, o vazio e a fluidez das relações estão em pauta. São tantos queixando-se da solidão, da desconsideração do outro, da instabilidade dos vínculos, da dificuldade em se envolver emocionalmente quando o outro se fecha para os sentimentos, dentre tantos outros discursos semelhantes, que poder-se-ia supor que, caso essa simples constatação significasse que aqueles que o dizem vivem em condição contrário ao que criticam, teríamos no mundo pessoas em número suficiente para mudar essa perspectiva.
No entanto o sofrimento emocional, toda essa batalha contra o outro, mas pelo outro, parece sobreviver e instalar-se como uma epidemia vampiresca, sugadora das existência e multiplicadora de vácuos e vazios. Bem, não me parece que essa seja uma condição nova na sensação de ser humano. A nostalgia consoladora pode nos fazer pensar que existiram tempos melhores, até porque os registros, históricos ou não, que nos são acessíveis trazem relatos sobre grupos bem específicos. Mas quem é que se baseia em um passado melhor pensando na vida de um escravo egípcio, de uma família camponesa norte europeia que vivia verão e primavera para prevenir-se do inverno e pagar impostos aos donos de sua terra, ou das vítimas de guerra de outrora ou de ontem?
Não que devêssemos basear a nossa vida no pior, mas que “melhor” é esse tão almejado dentre tantas existências outras possíveis? Bem, para isso ou para qualquer especulação, o que poderia ter sido não é, o que foi não é mais. Temos o presente, temos a nós mesmos, as coisas como estão. Relacionar-se pode ser mesmo algo difícil em tempos nos quais todos almejam a liberdade, ainda que não tenham a menor clareza do que ela se trata. Não há sequer definição consensual do que ela seja, não há evidência empírica do que ela poderia ser. Vivendo, primeiramente, aprisionados pelo trabalho, pela necessidade de sustentar-nos através de uma atividade considerada socialmente de respeito, com uma remuneração que nos possibilite ao menos o mínimo (ou não), por uma estabilidade que não nos tire o sono de amanhã, para, então, caso esta fase básica de sobrevivência superada, ter a ilusão de que precisamos nos vestir com roupas mais caras, morar em bairros mais enobrecidos, comer em lugares mais refinados, adquirir objetos cobiçados, e então escolher nossas relações a partir disso – a partir daí, tantas sequências possíveis seguindo esta mesma perspectiva.
Sendo assim, que liberdade conhecemos? Se há alguma coisa, a saber o dinheiro, que se interpõe entre as necessidades mais básicas da nossa vida e as nossas escolhas, é possível pensar em liberdade? Porquanto essa luta que parte dos clamores inegligenciáveis da necessidade do corpo, da sobrevivência bruta à sustentação de uma imagem criada, da sobrevivência de um simulacro; que tempo nos resta para dedicar a estas relações que tanto almejamos? Para enxergar no outro essa correspondência que buscamos? Talvez os praticantes criticados sejam também os praticantes criticantes…
A lógica material nos dá subsídio para pensar no universo dos afetos. Mesmo para executar uma multiplicação milagrosa é preciso um protótipo do que se pretende multiplicar para começar. Não se pode multiplicar pães sem nenhum pão, não se pode multiplicar peixes sem peixe algum, não se pode transformar água em nada, se não houver água. Por maior que seja o desejo de doar, é preciso ter algo consigo para reparti-lo ou fazê-lo múltiplo.
Todavia, o âmbito emocional não funciona de uma forma tão simples quanto o dos objetos. Muitos interpretam que um certo outro foi amado o suficiente, que foi querido o suficiente ou que teve qualquer outro tipo de afeto o suficiente para poder vivê-lo plenamente. Desconsideramos nesse julgamento a própria percepção do outro, e logo revelamos que somos incapazes de ter empatia com a mesma consistência com a qual julgamos. Desconsideramos o massacre diário ao qual todos estão submetidos desde a infância, pelas diversas fontes que nos perfuram com suas considerações: escola, colegas, as pessoas da rua, a televisão, os meios de comunicação, os amigos, “as famílias”, os livros e outros meios de comunicação. Há tanto que recebemos, que só quem conhece a própria armadura dá conta do que o atinge ou não. E ante as flutuações naturais da natureza lunar dos afetos, estas se reconstroem, se reconstituem, as vezes se tornam fortalezas por medo da instabilidade. O amor que vem, o amor que vai, o elogio de ontem que se converte em repreensão amanhã, a melhor amizade de anos que se torna distância. Desilusões.
Em um contexto no qual somos submetidos a insegurança em todos os níveis, desde do que se refere à sobrevivência do nosso corpo, a manutenção de nossos bens, até ao valor que temos enquanto pessoas, não surpreende que resulte nessa necessidade de proteção. Já não há instinto de proteção a um outro mais fraco, pois, embora não pareça, mesmo aqueles que se gabam: todos estão fracos demais. Não aprendemos a sentir pulsar interiormente o desejo de adotar um ato de gentileza, aprendemos a fazê-lo porque é “correto”, e isto engendra trejeitos por vezes assustadores de tão caricaturais. A exemplo da gentileza seguem-se o repertório de sentidos que não mais ultrapassam seus significados: afetos são como encontrados em dicionários, mas não como se fossem ditados pelos manuais ortográficos, mas pelos sentidos atribuídos através de meios aparentemente inocentes: um entretenimento que nos direciona a histórias que deveriam ser as nossas, que poderiam ser as nossas, que desejamos que fosse a nossa, mas não é. Não é a história de ninguém.
Essa estratégia de criar desejo tão explorada pelos meios de comunicação nos impede de conhecer os nossos próprios. Sejam os 10 quilos a menos ou o amante fantástico e aventureiro que aparece para nos salvar de uma vida de tédio, enquanto a revista acaba em alguns parágrafos, a novela em alguns capítulos, o filme em minutos, o jogo em tempos, quem sabe o que prossegue depois? Dos bastidores ao que há por trás deles, quem conhece de fato o que existe pós-final-feliz? Daquele ideal buscado na aparência, no jeito de ser, no jeito de ter, desses status que nos colocam como condição, o que de fato teria servido a nossa sensação de plenitude por mais do que alguns momentos?
Não parece mesmo possível relacionar-se com o outro quando não temos nada a oferecer porque nos ancoramos a um desejo comercial. Esse vazio do qual nos queixamos, se somos nós que sentimos, então também o alimentamos. Contribuímos para este esvaziamento que mata o mundo de fome: fome de sensibilidade. Dessa carência coletiva, o que parece inconsciente é o fato de que se somos desprezados, também desprezamos, se somos julgados, também julgamos, se somos descartados, também descartamos, e segue-se a dialética das ações, ainda que singularizadas por sutilezas. Dessa forma, como podemos esperar receber do outro o que não somos capazes de oferecer? Não seríamos também alvos das queixas que despejamos no mundo?
Não incorramos em engano, questionar-se sobre a própria posição em relação àquilo que criticamos no outro, não é semelhante à postura tão superestimada de gozar da solidão como solução mágica para os desencontros. Isso não é uma realidade: a maior parte das pessoas não estão felizes sozinhas. Essa escolha seria mais de outra natureza, e em alguns casos, mais uma defesa do que uma escolha de fato. Contraditório que seja, o próprio desenvolvimento do homem, do momento em que nasce à sua morte, nos revela uma ausência inquestionável de autonomia absoluta por parte da nossa espécie – é inevitável conviver. E essa coisa de conviver com o outro exige antes uma introspecção espinhosa para conhecer o outro em nós. Questionar-se sobre a própria posição em relação àquilo que criticamos no outro, seja outro Nós, seja outro Um, seja outro Mundo. É relacionar-se.
*Expressão de Jean Paul Sartre.