Entre livro e tablet, por Marina Colasanti

A menina tem seis meses. Sei disso porque ouvi a mãe dizer. E ainda mama. Ali mesmo, na mesa do restaurante, entre uma e outra garfada de pizza, a mãe lhe deu o peito mais de uma vez. Agora está sentada no carrinho em que chegou, olhando para um telinha, creio que uma espécie de tablet, com jogos ou figuras em movimento.

Ainda de manhã li o alerta da Academia Americana de Pediatria, segundo a qual estudos científicos demonstraram que crianças muito novinhas, quando submetidas ao bombardeio do mundo digital, podem vir a sofrer vários problemas. Entre eles, atrasos cognitivos, problemas de atenção, dificuldade de concentração na escola, transtornos do sono e de alimentação ( sobretudo relativos a obesidade).

A telinha que a menina olha agora, num esforço de entendimento e apreensão, está encaixada em uma estrutura plana, de material macio, cor de rosa, em feitio de boneco. A tela forma o corpo da estranha criatura, sobrando para os lados pernas e braços. A estrutura encaixa-se perfeitamente na parte dianteira do carrinho, com os braços servindo de suporte, o que me faz crer que tenha sido concebida exatamente para distrair bebês incautos, enquanto os pais dão cabo de pizza, cerveja, ou simplesmente conversa.
Diz a AAP, que as crianças americanas estão gastando uma média de sete horas diárias diante de telinhas de variados tamanhos. Não sei a média no Brasil, mas pelo que tenho visto em aeroportos, aviões, restaurantes e lanchonetes, deve andar mais ou menos por aí. A nova postura infantil é corpo largado, cabeça baixa, rosto iluminado pela luz fria da tela, e indicador agindo rápido. Com eles entretidos, os adultos podem mergulhar em suas próprias telinhas.

“O cérebro de uma criança- diz o alerta da AAP- se desenvolve rapidamente durante os primeiros anos, e as crianças aprendem melhor através da interação com pessoas, não com telas. É importante que passem mais tempo brincando ao ar livre, fazendo leituras, divertindo-se com passatempos e usando sua imaginação em brincadeiras”.

A pequena choraminga. Certamente está com sono, a hora dela dormir passou há muito. Então a mãe a pega no colo, põe o tablet cor de rosa sobre a mesa, e vai distraindo a filha mostrando-lhe como, batendo ou deslizando com o dedo, a figura muda.

Para que a mãe folheasse um livro, em vez de dedilhar uma tela, seria preciso: a) que o tivesse trazido e, eventualmente, comprado. b) que soubesse escolher o livro adequado. c) que tivesse real consciência de quanto a leitura é boa para a filha. d) que soubesse interagir com o livro. e) que fosse, ela própria, leitora.

É muita coisa, convenhamos. Pelo menos, na nossa cultura.

Este ano, mais uma vez, pudemos constatar a esquizofrenia social que faz com que, embora reafirmando constantemente o valor da leitura na infância, esse mesmo valor seja negado. Nas listas que ao fim do ano apontam os melhores de cada categoria, e que os veículos preparam com tanto esmero, alguém viu constar a literatura infantil? Reservam-se para ela, pelo menos, alguns lugares junto à literatura adulta?

Sem deparar-se com qualquer reconhecimento de valor, por que a mãe da menininha escolheria um livro em vez de um tablet, elevado pela publicidade a sonho de consumo? E como saberia ela que livro escolher, se ninguém lhe diz quais são os melhores? Quando a filha crescer um pouco, talvez escolham juntas algum livrinho Disney, para combinar com a mochila , o caderno, a malinha ou com a nova capa do novo tablet.

Por Marina Colasanti
Fonte indicada: Marina manda lembranças







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