Já fui quase milionário, sabes?,
tinha a tua avó,
a mulher mais bonita do mundo, ninguém tenha dúvidas disso, já te disse que tenho a certeza de que Deus só a levou por ciúmes?,
a nossa casa, uma vida inteira pela frente, tantos sonhos,
acreditava que um dia chegaria à Lua, vê lá tu, e não estive longe, se queres que te diga, mas amanhã conto-te essa história, hoje não,
trabalhava na repartição de finanças e as pessoas precisavam de mim, batiam-me à porta, pediam-me para trazer o impresso do IRS, o documento tal de tal, eu às vezes trazia, outras não, nunca pisei o risco,
a não ser ao volante, confesso, cheguei a dar 120 na recta da bomba da gasolina com o meu Mini, não digas ao teu pai, que eu dei-lhe cabo da cabeça para ele andar devagar, é o nosso segredo, está bem?, cruza aí os dedos comigo, vá,
depois nasceu o Afonso, um mocetão lindo, o meu menino, quando o pus no meio dos braços acreditei na vida eterna, vê lá tu, pensei que algo assim não podia acabar, e se calhar não acabou, o que está à volta é que mudou,
cinquenta anos a trabalhar, nunca falhei um horário, era o primeiro a chegar e o último a sair, se com estas coisas da informática conseguires investigar vais ver que faltei duas vezes em cinquenta anos, uma porque tive um acidente de carro, nada de especial, um toquezito, outra porque me esqueci de mudar para a hora de Verão e depois tive vergonha de chegar atrasado,
onde é que está a vergonha nos dias de hoje?, ganhámos tanto, telemóveis, internet, e perdemos a vergonha, quem é que ficou a ganhar?,
o meu pai morreu-me,
a morte entra-nos nos olhos como um pó invisível, podes perceber já isso, uma pessoa tem outra e depois não tem, o drama da vida é haver vidas instaladas na nossa, somos uma junção de vários pedaços e perder alguém é como uma amputação, já te imaginaste sem uma mão de repente?, dói mais do que ficares de repente sem o Chocapic, só para teres uma ideia,
e nem assim deixei de ir trabalhar, enterrei o meu pai e regressei às finanças, acreditava na riqueza de servir, na competência, fui um profissional exemplar, um chefe de família exemplar,
quando nasceu o teu pai senti-me um rei, e não é assim que todos os pais se devem sentir?,
e esta casa cheia de vida, os sons, os cheiros,
a tua avó era a melhor cozinheira do mundo, ninguém tenha dúvidas disso, já te disse que tenho a certeza de que Deus só a levou para comer bem?,
vês esta cómoda aí ao teu lado?, comprei-a de surpresa, tinha acabado de receber o subsídio de férias e quis ser feliz,
ainda quero, sabes?, o pior de tudo é que nunca deixamos de querer ser felizes e falta-nos cada vez mais, mas não vou dizer coisas tristes, para triste já basta a cara da tua professora, raios partam a mulher, que nunca se ri, não é?, vê lá se não contas isto ao teu pai, sim?, agora há aquela coisa da pedagogia e diz que não se pode dizer coisas destas, sabem lá eles o que é educar uma criança?,
o teu pai foi ensinado por mim e olha o homem que se fez, balelas mais a pedagogia, o importante é amar, e eu amo-te muito, Dioguinho, mete lá mais uma colherzinha à boca, que já conto mais coisas, sim?,
e então trouxe a cómoda e toda a casa estava cheia e ficou feliz comigo, o Afonso e o teu pai ajudaram-me a montar, foram três horas tão boas,
a vida no fundo pode não ser mais do que três horas tão boas, aproveita-as sempre que puderes, prometes?,
tudo isto para te dizer que já fui quase milionário, basta uma casa cheia para nada nos faltar, e um milionário é isso mesmo,
um milionário é alguém que tem tudo o que quer, não é?,
eu tinha, quando fecho os olhos ainda tenho, mas às vezes temos mesmo de os abrir, como agora,
o meu emprego, a minha mulher,
a melhor esposa do mundo, ninguém tenha dúvidas disso, já te disse que tenho a certeza de que Deus só a levou para ter com quem casar?,
chegou o teu pai, logo agora que te ia falar do que veio depois de ser quase milionário, já vais, há uma reunião qualquer e ele tem de ir, eu compreendo, mas custa muito, não lhe digas, tem uma reunião às sete e ainda te vai deixar na casa de um amigo qualquer pelo caminho,
nunca o deixei com ninguém, levei-o tantas vezes comigo para a repartição e ele adorava, mexia nos computadores, perguntava-me o que era o dinheiro e para que servia, isto só entre nós, mas gostava que ele agora tivesse essa mesma dúvida, talvez ficasse aqui mais tempo connosco, eu, tu e ele nesta mesa, a lareira acesa, era bom perguntar-lhe da vida, o que faz, o que sente, o que sonha,
não sei nada do que quer o teu pai, suspeito mesmo que não sei mesmo nada do que é o teu pai, passaram tantos anos desde que lhe disse pela última vez que o amo,
amo-te, meu filho, amas-me de volta?,
e já foi e tu já foste, a casa inteira, quieta, a cómoda com pó, até ela tem saudades de ti, minha princesa, minha rainha, onde foi que falhámos para terminarmos assim?, tu morta e eu sozinho, quem morreu primeiro afinal?,
cá vou andando, de vez em quando, tenho aqui o Dioguinho, viste-o sair agora?, está um homem, não está?, a Carlinha não vem há semanas, já está no terceiro ano, imagina só, mas não há tempo, dizem-me, e eu acredito, tenho de acreditar para continuar, tu sabes,
eras a melhor pessoa do mundo, ninguém tenha dúvidas disso, já te disse que tenho a certeza de que Deus só te levou para ser uma criatura melhor?,
já fui quase milionário e o tempo foi-me tirando tudo, primeiro tu,
amo-te, minha senhora, amas-me de volta?,
depois os filhos, o tempo deles, pelo menos, depois reformaram-me e mataram-me um pouco, e vê lá tu que agora me tiraram uns quantos euros no final do mês, não sei se vou conseguir pagar os medicamentos,
nunca chegaste a velha, que sorte, a vida não se mede em dias, sei agora, a vida mede-se em farmácias,
há um governo que quer baixar o défice,
nem queiras saber o que é isso, que eu também não, consiste basicamente em tirar dos pobres para dar aos ricos, isto digo eu, que não percebo nada e sou só um reaccionário, gente ruim não muda, não é?,
e então para baixar o tal do défice vão tirando o que me restava, não quero pedir dinheiro ao Afonso nem ao Carlos, Deus me livre, que eu tenho dignidade, cá me vou arranjando como puder, se não der para comer bife, como sopa, como ouvi uma senhora dizer no outro dia na televisão, eu até nem gosto muito de bife, só se fosse o teu, claro,
já fui quase milionário e agora sou quase morto, dói muito mas aguenta-se,
assustam-me sobretudo os segredos da escuridão, e por isso saio para o fim do silêncio,
na rua há barulho suficiente para chorar sem que ninguém note, vens comigo?,
és a melhor companheira do mundo, ninguém tenha dúvidas disso, já te disse que tenho a certeza de que Deus só te levou para ter com quem passear?
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in Prometo falhar, a mais recente obra de Pedro Chagas Freitas
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Notas do editor: O texto contínuo e sem maiúsculas é a formatação original usada pelo autor. Já a imagem de capa é uma homenagem ao filme “Elsa e Fred”, que retrata uma linda história de amor na terceira idade.