As flores estavam ali e eu não as olhava. Não as havia olhado sequer ao entrar naquele restaurante de hotel, suspenso sobre a cidade vazia e iluminada em noite de domingo.
Percorri cuidadosamente o cardápio, escolhi o vinho que considerava merecido depois de uma jornada de trabalho. Em seguida me voltei para a paisagem, apaziguada por aquelas ruas sem carros, prenúncio de sono urbano.
As flores não olhei, porque acreditei fossem falsas e não se digna de um olhar aquilo que tenta nos levar ao engano.
E logo a taça de vinho chegou antecedendo a comida. Procurei na bolsa algo para ler ou escrever, bebi um gole, serena com a minha solidão. A bem da verdade, aquele vasinho de porcelana branca que eu intuía pançudo e obediente sob as folhas pontualmente arranjadas, me incomodava. Estava próximo demais da minha mão, era demasiado invasivo para um objeto que eu não havia solicitado. Quase me empatava.
Foi então, só porque desejava afastá-lo, que levantei o olhar.
Sob o meu olhar, tudo permaneceu ordenado e imóvel, a porcelana e o pequeno buquê. Ou, pelo menos, assim me pareceu por um instante. Um instante só. Depois reparei, ainda distraída, que entre as belas folhas luzidias havia uma desgastada na beira, e outra, quase escondida, que dobrava sobre si mesma a ponta seca.
Como a incrédula que era, como a cega que havia sido até então, estendi a mão envergonhando-me do gesto, e as toquei.
Estavam vivas.
Nada havia de parado acima do vaso. Entre o escuro das folhas, as frésias amarelas, tão perfeitas que eu as havia considerado falsas, luziam na penumbra, oferecendo o escuro segredo de seu miolo. E as pétalas emitiam uma vibração que não me atrevi a alisar, talvez cromática, talvez de última vida. No ventre da porcelana, os talos sorviam lentos.
Senti a comoção tomar-me a garganta como se tivesse entrado em um bosque. E já o garçom chegava com a sopeira.
Naquela sala de jantar anódina e penumbrosa, um encontro havia estado à minha espera, uma doação. E eu quase o havia perdido. Minha alma, em defesa contra tanto plástico, tantas imitações, tantas flores chinesas, tanta gota de orvalho eternizada, tantas pétalas falsas cobertas de poeira, tantos pistilos rígidos como antenas de insetos, tanta mistificação aceita e convencionada, havia trancado o olhar, imobilizado a percepção.
Mais terrível é o engodo quanto mais mimética a imitação, aquela produzida por máquinas robóticas, que só na inserção das folhas revela a sua verdadeira natureza, e que tenta se sobrepor à nossa sensibilidade. Muito outra é a graça das flores de papel crepom com seus talos de arame. Sinceras e modestas, não insultam ninguém, não pretendem o engano. Brincam apenas de ser flores ou metáfora de flores, e enfeitam.
Tomei meu vinho, com um olho posto nas frésias, brinde ou cumplicidade. E enquanto estive ali, seu esforço de sobrevivência não foi em vão, nem se perdeu no escuro a vibração das pétalas.
Saí pensando nelas e me perguntando, sem esperar resposta, porque tornou-se tão comum colocar flores falsas em mesas de restaurante, se só as verdadeiras nos nutrem.
Texto de Marina Colasanti