Há certas coisas que, por minúsculas que sejam, desatinam tanto que chegam a tirar nossas boas e saudáveis noites de sono. Um início de namoro, sem a certeza de que realmente esse é o momento certo ou a pessoa esperada para se começar algo tão sério; adotar um filhote de labrador, só porque assistiu ao filme Marley&Eu e saiu suspirando do cinema, encantada com a história de carinho e dedicação do casal feliz com o cão; um corte de cabelo mal resolvido! Ah! Este, com certeza, movimenta cada fibra do corpo e a autoestima da pessoa, provoca uma queda brusca, e não há paraquedas que resolva.
Outro dia, li uma crônica de Clarice Lispector que falava sobre o espanto do filho ao vê-la depois de ter cortado o cabelo. Parecia que faltava algo de essencial nela, só porque cortou o cabelo bem curto e se foi uma parte da sua aparência diária. É que cabelo é tão parte da gente como a alma, possui movimento, cheiro, chama a atenção, sabe viver sozinho, tem vida própria. Pura analogia com outros fatos, qualquer identificação não será mera coincidência.
Quando tomamos certas decisões que mexem com nosso estilo e desarticulam o fluxo do nosso cotidiano habitual, muitas vezes nem imaginamos como o eu – esse interior mais íntimo da gente – pode não entender e levar a coisa a sério demais, cobrando alto preço por algo que em pouco tempo voltará ao normal.
O que devemos levar em conta é o presente que temos, repleto de desafios e aceitações todos os dias, de como acordamos e nos vestimos de forma diferente para o mundo sem percebermos como realmente somos ou conquistamos um novo estado de total desconhecimento próprio. Para uns, funciona, para outros, não. Só não vale levar um desatino tão a sério a ponto de não sair vivo dele.
Quem dera fôssemos tão programados assim, para não sofrermos desses longos desatinos que misturam tudo ao nosso redor. Mas qual a graça de tudo se ficássemos assim, tão distantes da gente? Precisamos sim, de uma boa dose de desatino, mas que não ultrapasse nossa sutil percepção do que podemos fazer com nossa realidade. E assim, podemos nos alternar entre desatinos saborosos e uma realidade menos nua e crua.