No ano em que meu pai faleceu, encontrei dificuldade em definir uma maneira menos impactante de contar a minha história. Ficou difícil fazer novos amigos sem mencionar meus traumas. Eu já estava meio acostumada com isso, porque antes dos anos “pai com câncer” tive os anos “mãe com Alzheimer” e por um tempo também vivi o “não faço nada da vida” (na minha fase entre carreiras). Com tudo isso a morte do meu vô ficou até um pouco camuflada, mas sim, também perdi meu avô, no mesmo ano em que perdi meu pai. E vivendo tanta coisa tão perto, ficou difícil separar quem sou eu das partes mais tristes da minha história.
Então em um ato meio desesperado para quebrar o gelo, quando conheço alguém, já vou logo falando tudo de uma vez que é para não ter que revisitar pouco a pouco a doença da minha mãe e os cuidados com ela, o ano do tratamento do meu pai e a perda dessa batalha Em cinco minutos faço um breve resumo de tudo, na esperança de que a pessoa consiga digerir rapidamente e que possamos mudar logo de assunto. Claro, isso nunca deu certo, a intenção pode ser boa, mas nenhum ser empático passa ileso pelo meu relato.
A verdade mesmo é que com tanta coisa que aconteceu, ainda encontro dificuldade para entender que os meus traumas não me definem. Eu não sou a perda do meu pai, nem a doença da minha mãe. Tudo isso é com certeza algo que ajudou a moldar quem sou hoje, a maneira como escolho viver e tantas outras coisas. Mas, minhas dores não me definem.
E é certo que por ser algo tão recente, ainda estou aprendendo a contar minha história, talvez eu precise antes entender que não preciso contá-la para um recém-conhecido e nem para ninguém, porque a doença dos meus pais é apenas um capítulo da minha história. Dessa maneira, não preciso justificar nada do que me aconteceu e porque estou bem. Não, nossos traumas não nos definem, eles eventualmente podem nos tornar mais humanos, melhores, mais fortes, mas eles não nos definem.
E aprendi que da mesma maneira que nos apegamos à objetos e pessoas, nos apegamos também aos nossos traumas. Sei que preciso ter esse cuidado, de não deixar que minhas dores me definam, de contar minha história a partir do que eu sou, do que gosto, do que faço. É certo que nunca vou esquecer acontecimentos tão marcantes da minha vida, mas chega um tempo é preciso deixar toda essa dor ir embora. Para algumas linhas da psicologia o luto ou as dores de um trauma podem durar até um ano e meio, o que vem depois disso é apego, é desculpa que usamos para justificar nossos erros e desresponsabilização perante nossas escolhas tortas, é um monte de outras coisas, é desculpa para não ser feliz, menos luto.
Todo e qualquer ser humano tem seus traumas, suas partes mais tortas e sombrias, suas feridas mais profundas, mas existe um momento em que precisamos aprender a ressignificá-los. É preciso desapegar dos traumas e entender que eles não nos definem. Você não é a perda trágica de alguém que ama, a perda de qualquer maneira de alguém que ama, a rejeição dos pais, a separação dos pais, o abuso sofrido na infância ou em qualquer outro período da vida, a doença de pai e mãe, você não é a sua doença. Você não é a perda de um filho, o aborto que você precisou fazer, o aborto que seu corpo precisou fazer, o casamento que ruiu, o coração partido. Você é muito mais que isso. Você é maior do que seus traumas.
Tudo que parece insuperável é de fato superável, só não é passível de ser esquecido, mas dá para caminhar com tudo isso e ser feliz, sem precisar contar eternamente a mesma história triste. Você é muito mais que suas dores. É preciso desapegar delas para viver mais leve, para viver também as dádivas, porque da mesma maneira que existe na nossa histórias partes tão tristes, também tem muita coisa boa esperando por nós, basta abrir espaço para a alegria entrar.