A felicidade instantânea é insípida, inodora e incolor

A analgesia emocional é o caminho mais rápido e seguro para nos livrar da dor. Mas, ela nos rouba o que temos de mais precioso: o prazer de viver.

Nossas lembranças não montam um quebra-cabeça; não há encaixes perfeitos ou figuras inteiras que se formam por partes recortadas. Nossas lembranças são o caos, a confusão estabelecida pela mente instável que é regida pela emoção. O paradoxo é mais constante em nossas vidas do que a coerência, isso é fato. O que nos traz alegria pode, ao mesmo tempo, nos infringir dor. E, a dor, pode ser a prova mais contundente de que a experiência é real e vale o mergulho. Se o mergulho vai garantir felicidade?! Que importância tem isso? Afinal, nossos momentos mais intensos de felicidade acontecem na superfície, não nas profundezas. Quem persegue a felicidade não precisa mergulhar; pode boiar eternamente.

Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet), personagens do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, representam no roteiro de Charlie Kaufman, a possibilidade de recriar lembranças dentro de sua própria mente, quando o desejo inicial era justamente eliminá-las para evitar a dor. Ao descobrir que Clementine submeteu-se a um tratamento experimental para apagá-lo de suas memórias, Joel fica desesperado porque ainda a ama. Ele tenta reproduzir a escolha de Clementine, mas desiste. Em vez de apagar o amor mal-sucedido, ele o recria. E subverte as memórias reais a situações ideais, nas quais encaixa o amor de e por Clementine. Não é o amor que Joel luta para manter vivo; mas, sim a lembrança de que ele existiu.

Na atualidade, nossas lembranças passeiam pelas mais diversas e adaptáveis áreas do conhecimento, a depender de sua natureza. Estudiosos se debruçam sobre o complexo assunto da aprendizagem e recorrem às mais diversas teorias e estudos científicos para tentar entender qual é a relação entre a nossa capacidade de captar uma informação, transformá-la em conhecimento para, só então, convertê-la em experiência. A verdade é que nenhuma situação, fato ou conceito que não atraia a atenção de nossa mente por sua relevância, sequer chega a fazer parte do nosso acervo de memória imediata; portanto, é descartado; não chegará a ser conhecimento, muito menos experiência. E nós, seres pensantes que somos, dependemos do aprendizado para tudo, desde balbuciar os primeiros sons a nos conectar com o mundo e nos relacionar afetiva, profissional e socialmente. Se refutamos o sofrimento logo de cara, como é que vamos aprender a lidar com ele?

Ocorre, estranhamente, que demonstramos uma bizarra atração por tudo o que nos causa alguma dor. Temos muito mais apego às nossas memórias dolorosas do que aos episódios de feliz normalidade. Por que será?! Outra questão não menos estranha é que o nosso cortejo à dor se limita às fatalidades que nos atingiram no passado; estão lá, acomodadas no tempo como se fossem um filme com recursos de “pausa”, “volta” e “prossegue”.

Assim, quando por alguma razão nos bate uma saudade inexplicável da dor passada, basta clicar o botão e revivê-la. Sim, somos seres muito estranhos. No momento em que temos de lidar com a situação dolorosa iminente, queremos fugir; queremos ter também o botão “passe rápido”; queremos atropelar a experiência que dói. Só para podermos guardá-la numa caixinha segura e voltarmos a cortejá-la lá do futuro quando nos der saudade. A dor presente ninguém quer. Estamos ficando viciados em analgésicos emocionais. Afinal, eles não são ilegais (bem, pelo menos a maioria não é!), cabem em todos os bolsos e independem de vínculos emocionais para serem utilizados. Esses remedinhos milagrosos nos livram da dor, como num passe de mágica. E são ecléticos! Você pode encontrá-los numa caixa de bombons de chocolate; numa garrafa de vinho; numa viagem; num bom livro; numa noite de sexo casual; numa mudança de visual e até mesmo numa instituição religiosa. Os analgésicos emocionais evitam que nos encontremos frente a frente com nossas frustrações, nossos desenganos, perdas e outros monstros até piores e mais feios.

O problema é que esses recursos artificiais fazem efeito por pouco tempo, dada à sua natureza imediata e superficial. Seres sociais que somos, carecemos da conexão com o outro para nos sentirmos confortáveis. Não basta ser bem-sucedido, feliz, bonito, desejado. É preciso garantir que o outro tome conhecimento de tudo isso. É preciso tornar público. Sendo assim, um dos maiores fantasmas do nosso imaginário é ser excluído socialmente. Para aplacar nossa necessidade de pertencer e garantir que sempre haverá uma plateia para testemunhar nossos grandes feitos, nós estamos sempre em busca de um número maior de contatos, seguidores e afins. Pior do que não ter plateia, só mesmo não ter o que exibir. Nesse caso de dor extrema, talvez os analgésicos emocionais já não sejam assim mais tão eficientes.

Entretanto, somos também muito inventivos, encontramos sempre uma nova saída; mais rápida, mais fácil e mais eficiente. Cientistas da Universidade da Flórida realizaram uma pesquisa, orientada pelo Psicólogo Gregory Webster, na qual utilizaram Paracetamol (analgésico de uso comum), para auxiliar pessoas que sofriam de exclusão social e outros contratempos. Os cientistas dividiram os pacientes voluntários em dois grupos: um foi medicado com Paracetamol e o outro recebeu placebo durante três semanas. O analgésico reduziu a dor do sofrimento; sua ação no Sistema Nervoso Central reduz as respostas neurológicas para rejeição e angústia, atuando em áreas do cérebro responsáveis por processar mensagens de dor física.

É claro que os resultados são inconclusivos e que esse medicamento, assim como todos os outros, só pode ser utilizado sob prescrição médica. Webster alerta para a necessidade de tratar as dores da alma com a mesma atenção que se dá para as dores físicas. O pesquisador ressalta que o problema da exclusão social afeta um número significativo de pessoas; portanto, deve ser assunto de interesse de políticas públicas.

Pesquisas científicas à parte, a verdade é que sonhamos cada vez mais com respostas e soluções instantâneas para curar nossas mazelas, inclusive as da alma. E, não deixa de ser assustador pensar num “inocente analgésico para dor física” como a solução para a gritante falta de habilidade em nos relacionarmos com nossos semelhantes e nossos diferentes. Esse desejo obstinado pela felicidade instantânea e pela distância do sofrimento, ainda vai nos levar longe. O problema é que vai nos levar, também, para muito longe de nós mesmos e para uma vida sem sabor, sem aroma e sem cor. Corremos o risco de “dar de cara” com alguém sobre quem não sabemos quase nada, ao nos vermos no espelho; uma personagem de ficção.

Na vida real, ainda nos cabe a difícil tarefa de administrar nossa complexa existência. Vivemos em busca da racionalização, enquanto sabemos que somos uma incompreensível mistura de células, experiências, desejos, expectativas, frustrações, e mais um milhão de fatores que nos transformam o tempo todo. Somos apenas um projeto, nunca estaremos prontos. E é por isso, em respeito à nossa impermanência e incompletude que precisamos compreender que a dor é inevitável no processo de amadurecimento. Sem ela, corremos o risco de nunca sermos capazes de sentir o real prazer que nos é garantido em nossa rápida estadia por aqui: viver!







"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"