Foucault: a pena como manutenção do Estado

O Estado manipula as pessoas e, por conseguinte, a sociedade, de acordo com suas necessidades. Tudo é minimamente articulado, para que a ordem seja mantida e não haja indivíduos capazes de questionar o status quo. Nessa perspectiva, a criminalidade também pode ser analisada como um elemento de manutenção do Estado, sobretudo se analisarmos o poder punitivo. Michel Foucault nos diz muito sobre isso.

Na Idade Média, as penas estavam ligadas à alma, dado que se vivia numa época em que a religião era o centro norteador da vida. Dessa forma, ao cometer um crime, o indivíduo estaria em pecado, e, consequentemente, perderia a sua alma. O medo, assim, instaurava-se entre as pessoas, as quais estavam sob o jugo do pensamento da Igreja.

Com a modernidade e os Estados Absolutistas, essa lógica ainda se manteve, pois os reis eram vistos como deuses, de modo que, ao quebrar o pacto social estabelecido, o indivíduo estava desrespeitando o próprio deus, personificado na figura do rei. Há de se considerar que, embora se viva no mundo racional moderno, os resquícios da sociedade feudal extinguiram-se apenas com a dupla revolução burguesa do século XVIII, a saber, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.

Quando, de fato, há uma superação do pensamento medieval, o corpo passa a ser valorizado e, portanto, matar ou torturar as pessoas, como era típico no suplício, torna-se uma prática que não se coaduna com a sociedade capitalista industrial, na qual se faz necessária a mão de obra.

Dessa maneira, o Estado busca adaptar o sistema punitivo à nova realidade social, logicamente, para atender aos interesses da burguesia, a qual, além do poder econômico, possui agora o poder político, de modo que pode adequar a sociedade a seus interesses de forma mais fácil. Surgem as prisões como conhecemos hoje, nas quais o delinquente cumpre a pena. A prisão é vista, então, como uma segunda escola para aqueles que não aprenderam de forma correta as regras de convivência e de obediência.

Foucault atenta para o fato de que, para o delinquente se ressocializar, é preciso que ele seja instruído, a fim de que possa ter condições mínimas de sobrevivência, ou seja, uma profissão na qual possa ser uma mão de obra útil, como também qualidade para participar da cidadania, da vida em comunidade e, assim, cumprir as regras impostas pelo pacto social.

A mudança paradigmática que se estabeleceu na pena deveu-se as necessidades sócio-históricas da época, para atender aos interesses da classe dominante. Passado algum tempo, chegamos ao mundo contemporâneo, chamado por muitos de pós-moderno, e novas necessidades sócio-históricas se estabelecem, de tal maneira que a prática punitiva ganha uma nova faceta.

Na modernidade líquida – como diz Bauman – vivemos sob o império da insegurança, inclusive do ponto de vista da criminalidade. Assim, o Estado passa a ser cada vez mais necessário, uma vez que ele deve prover a segurança, assim como a iniciativa privada, através dos condomínios fechados, segurança privada, shopping centers.

Há, portanto, uma insegurança institucionalizada, em que apenas o Estado e os poderosos da iniciativa privada se beneficiam (os quais não raramente são os mesmos). Para a elite, a insegurança é resolvida com os condomínios fechados e a segurança privada. O pobre não tem a mesma possibilidade e, assim, padece com a insegurança e a criminalidade (basta lembra que, nos confrontos entre a polícia e as facções criminosas na favela, são as pessoas de bem que mais sofrem as consequências).

Quanto maior a insegurança, mais necessário é o Estado. O acúmulo de riquezas por essa classe aumenta ainda mais as desigualdades sociais e, consequentemente, a criminalidade, pois não são dadas condições de paridade entre os indivíduos (isso não justifica, de forma absoluta, a criminalidade, já que ser pobre não implica ser criminoso, pois, se assim fosse, estabelecer-se-ia um determinismo, em que todo pobre é delinquente). O Estado não cumpre a sua função educadora, preventiva, apresentando-se apenas com a função curativa, repressora, a qual é muito mais mercadológica.

O indivíduo sem poder econômico e cultural não possui condições de escapar da insegurança. Pela falta do primeiro, não pode fugir para o mundo dos condomínios fechados e da segurança privada e, pela falta do segundo, não possui o discernimento necessário para entender o sistema no qual está envolvido (e é o principal prejudicado). Assim, clama de forma desesperada pela ingerência do Estado, para que se sinta seguro.

Sendo assim, a pena privativa de liberdade atende a interesses próprios dos dominantes que lucram com isso, além de institucionalizarem a insegurançan para que possam ser vistos como indispensáveis à sociedade. A aplicação desse sistema punitivo serve, portanto, para manter o regime ditatorial de uma democracia oligárquica, garantindo a exploração de muitos por poucos. Como diz Shecaira:

“A pena privativa de liberdade é a forma mais extrema de controle penal. É sabido que o regime penitenciário regula de modo minucioso todos momentos da vida do condenado, podendo despersonalizá-lo e convertê-lo num autômato. Essa pena tem um vínculo umbilical com o próprio Estado que a criou. A pena é um instrumento assecuratório do Estado, a reafirmação de sua existência, uma necessidade para a sua subsistência.”

Assim, o sistema punitivo que se aplica hoje, cheio de falhas e que não ressocializa o delinquente, sendo uma verdadeira escola do crime, é interessante para o próprio Estado e aos seus parceiros poderosos. Essa afirmação pode até ser paradoxal, e o é, mas, se o Estado implementasse um sistema efetivo, pelo qual diminuísse a criminalidade (e sabemos que a melhor maneira disso ser feito é por meio da educação, de forma preventiva), a sua função social diminuiria sensivelmente, pois quanto menor a desordem, menos se faz necessário o Estado.

Não quero dizer, com tudo isso, que a criminalidade é culpa do Estado, já que existe uma série de fatores que levam o sujeito a delinquir. Mas quero abrir o horizonte para a possibilidade (não sou o dono da verdade) de o Estado e a iniciativa privada, ou seja, os dominantes serem os principais beneficiários de um sistema punitivo que não recupera, tampouco ressocializa ninguém. Pelo contrário, devolvem o delinquente ainda pior para a sociedade, retroalimentando o crime.

O sistema, a fim de se manter, cria indivíduos incapazes de questionar, repetindo como meras máquinas o que lhes é passado, ou dito de outra forma:

“A disciplina faz funcionar um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados.”







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