Em todos os programas de recuperação de toxicodependentes, independentemente do modelo especifico que possam seguir, considera-se invariavelmente que as drogas são agentes de prazer, sendo essa a variável fundamental no desenrolar da adição. Nesta ótica, se as drogas não provocassem prazer, não existiria adição.
Dito isto, não perderei muito tempo a falar sobre a perspetiva moralista que se encontra na base do posicionamento em questão. Todos sabemos o quanto a imensa fração moralista das nossas sociedades censura o prazer, inclinando-se apressadamente a punir, ou mesmo a excluir, os que considera desmesurados abusadores do mesmo (do prazer), como seria então o caso dos toxicodependentes.
Penso mesmo que esta dimensão punitiva é uma condição pré-determinante, no campo da exclusão social dos toxicodependentes. Curiosamente, os programas de recuperação e as técnicas de tratamento difundidas, não andam muito longe da inclinação a punir estes desmesurados abusadores do prazer, recompensado depois o melhor que podem, os que se tornam abstinentes.
Mas desiludam-se ambos, técnicos da cura dos viciados no prazer e fração moralista da nossa sociedade, pois a equação “droga = prazer” reflete contundentemente o equivoco cientifico-moral, no qual radicam as vossas convicções.
Efetivamente, o que os toxicodependentes procuram nas drogas não é o prazer, é uma cura para a dor. Portanto, não procuram nas drogas um prazer perigoso, mas desmesuradamente ambicionados, procuram sim um método radical para escapar ao desprazer, através da permanência o mais continuada possível, num sempre ansiado estado de ausência de tensões, nirvânico, que então permita escapar à angústia. Neste quadro, se os próprios toxicodependentes dizem que se drogam por prazer, devemos compreender que tal se deve a três fatores fundamentais:
Por um lado eles não podem evocar a dor a que procuram escapar, mas à qual não têm acesso, pois esta encontra-se, obviamente, sujeita à ação dos mais severos mecanismos defensivos, regra geral associados à recusa da realidade psíquica;
Por outro lado, perante a possibilidade do alivio da dor propiciado pelos químicos, óbvio será que eles deduzam do consumo um prazer inflacionado (e muito, veja-se neste sentido o mito do flash orgásmico);
Por outro lado ainda, dizendo que se drogam por prazer – no contrabalanço da falta de sentido que sempre os ameaça –, eles procuram compreensivelmente afirmar a sua legitima humanidade, já que o prazer é, afinal de contas, a determinação que melhor define a condição humana (e os moralistas receiam isto).
Mas, para reproduzir o discurso do paciente, não precisamos de psicólogos, pois não? Até porque, na verdade, quem conhecendo os efeitos das drogas, não necessita delas para escapar à angústia, sabe bem que eles são demasiado pálidos e desinteressantes, para justificar, em seu nome, o tão deteriorante percurso da carreira toxicómana.
Neste quadro, como nota colateral, convém sempre lembrar a brevidade da ressaca, a cujas manifestações físicas, como é óbvio, é impossível subtrair os efeitos somáticos da angústia inflacionada pelo medo da privação. Para além deste aspecto ser claramente negligenciado, a brevidade da ressaca, como dizia, com o culminar da qual a toxicodependência raramente termina, em muito enfraquece a teoria da infernal dependência física, fundamentada antes de mais numa suposta pré-condição genética (para a qual nunca existiram provas científicas efetivas). Mas poucos parecem querer pensar nisso. (…)
Em suma, a toxicodependência não é mais do que uma das possíveis estratégias para escapar à dor mental (ao sofrimento psíquico), sempre inscrita no âmbito de uma perturbação psicopatológica que a antecede, cuja natureza, como saberão, quase nunca escapa às características definitórias das estruturas estado-limite.
O toxicodependente é, portanto, no seio de um grupo de pacientes bastante difíceis, um paciente redobradamente difícil. E é tão difícil por quê? Porque não é fácil persuadir um paciente, com semelhante grau de intolerância à frustração, a abdicar da única cura para a dor que até à data conheceu (a droga), quando não lhe podemos oferecer a breve termo, algo de comparável eficácia no campo da redução das tensões penosas (pelo menos ele assim sente e resistentemente crê), ou seja, no campo da aspiração ao Nirvana, como lugar onde se escapa à angústia.
Mas este é, perversamente, o caminho indicado pela finalidade da pulsão de morte; vem dai a sua força. E chegados aqui já dissemos muito, mas muito mais falta dizer. (…)