A sociedade contemporânea é construída sob o pilar da liberdade, contudo, um certo pensador chamado Aldous Huxley descreveu que vivemos em uma prisão de grades invisíveis, na qual nós mesmos insistimos em permanecer. Essa consideração estava no seu magnífico “Admirável Mundo Novo” e, assim, a liberdade tanto no mundo novo de Huxley quanto no nosso é apenas superficial e enganosa, visto que estamos submetidos a ditaduras que aceitamos voluntariamente. Uma dessas ditaduras é a das aparências, a qual pode ser bem observada no filme Beleza Americana (American Beauty), de Sam Mendes.
O filme retrata a vida da classe média americana através dos olhos de Lester Burnham (Kevin Spacey), um quarentão, que vive uma vida totalmente vazia e sem sentido, baseada apenas nas aparências. Derrotado e sem ânimo para viver, Lester já inicia a trama demonstrada essa sua pseudo-vida:
“Meu nome é Lester. Essa é minha vizinhança. Essa é minha rua. Essa é minha vida. Eu tenho 42 anos e, em menos de um ano, estarei morto. É claro, eu ainda não sei disso. E, de certa forma, eu estou já morto.”
Com uma vida profissional sem sucesso e entusiasmo, um casamento de fachada e uma relação insossa com sua filha, o protagonista demonstra a sua inexpressividade e o seu vazio interior, bem como, a sua morte ainda em vida, uma vez que as aparências que ostenta não conseguem lhe proporcionar a potência necessária para que se sinta verdadeiramente vivo. Isso é reforçado quando ao se masturbar no chuveiro pela manhã diz:
“O melhor momento do meu dia. Depois só piora.”
Lester se sente como fracassado, é um fracassado e não está mais disposto a esconder isso, ou seja, a partir do momento em que toma consciência plena de que a sua vida não o satisfaz de modo algum, o protagonista busca fugir da vida de aparências que vive. Ele pede demissão, dizendo tudo que sempre quis dizer, mas não tinha coragem; compra o carro que sempre quis; começa a se exercitar; arruma um emprego que exerceu na juventude e que não exige muita responsabilidade; e muda seu posicionamento perante sua mulher e filha.
Ao passo que Lester entra em “transformação”, sua mulher, Carolyn Burnham (Annette Bening), uma corretora imobiliária, mergulha ainda mais no universo de aparências em que vive. Carolyn vive num mundo em que o principal objetivo é ter sucesso. Mas não apenas isso, esse sucesso deve ser conquistado e demonstrado, seja por intermédio de bens materiais, como um sofá de tecido italiano, seja pela demonstração para os outros de que tem uma ótima relação com seu marido e, sobretudo, por meio da imagem de felicidade que aparenta o tempo inteiro.
Dessa forma, a imagem de felicidade vale muito mais do que a felicidade em si e, portanto, as aparências exercem muito mais valor do que a essência das coisas, das relações, da vida. Não importa como as coisas são e sim o que elas aparentam ser, isto é, o seu valor sígnico perante o olhar social. A realidade se afasta e dá lugar a um mundo de aparências, em que o valor das coisas é determinado pelo olhar que o coletivo oferece, de modo que as próprias ideias de felicidade e sucesso acabam, nesse prisma, sendo determinadas pelo mundo de aparências construído pela sociedade burguesa americana.
Esse olhar que busca tão somente o valor que as coisas aparentam fica claro, por exemplo, na relação que Carolyn estabelece com Buddy Kane (Peter Gallagher), o “rei dos imóveis”. Carolyn endeusa o indivíduo sem conhecê-lo enquanto pessoa apenas pelo fato dele representar a imagem de sucesso que ela idealiza, chegando a manter uma relação extraconjugal com ele, já que Buddy é poderoso, feliz e bem sucedido aos olhos dela, e o seu marido é um fracassado e culpado pela não realização dos seus “ideais”. Aliás, é através de Buddy que escutamos um resumo perfeito do filme.
“Podem me chamar de louco, mas minha filosofia é que para ter sucesso deve-se projetar uma imagem de sucesso o tempo todo.”
As aparências, o valor sígnico das coisas, a imagem, o status, o valor no mercado da personalidade, valem muito mais que o real naquela sociedade. Vidas enfadonhas e infelizes são escondidas com máscaras de felicidade, que devem ser demonstradas para todos os outros atores sociais. A própria “libertação” de Lester se dá em função de uma imagem e, assim, continua tão preso quanto antes, uma vez que ao se “libertar”, Lester buscou construir a imagem de um cara jovem, sarado, que fuma maconha e faz o que der na telha, sem se importar com qualquer conseqüência. E, pior, teve como estopim dessa “libertação” o desejo desenvolvido por Angela Hayes (Mena Suvari), a melhor amiga de sua filha.
Sendo assim, Lester ao fugir do seu mundo de aparências, mergulhou em outro mundo de aparências, no qual buscava construir uma imagem que pudesse seduzir e conquistar Angela, que era vista por ele como a coisa mais bonita que já viu. Angela representava a personificação da “Beleza Americana”. Uma garota bonita com uma imagem de sucesso, segurança e felicidade, a qual todos ficam “babando”. Ela é como a rosa vermelha estadunidense, tem uma bela aparência, é de fácil cultivo, não possui espinhos, mas não possui perfume, isto é, não possui uma essência que a torne única.
Se todos os personagens supracitados representam a artificialidade da vida, a mentira podre escondida por uma capa colorida, o que não dizer do Coronel Fitts (Chris Cooper), que esconde a sua homossexualidade atrás de uma imagem de militar durão cheio de regras e disciplina? Um indivíduo que passa a imagem de seriedade e autocontrole, mas vive uma luta interna contra os seus verdadeiros desejos.
Beleza Americana é um filme que demonstra de forma bem estruturada e clara a decadência de uma sociedade (e não apenas a americana) que vive de aparências e esconde as suas misérias e infelicidade atrás dos slogans e estereótipos de sucesso determinado pela sociedade. O filme traz uma reflexão profunda sobre a rede de mentiras que nos cercam e a forma como nos voluntariamente buscamos nos enquadrar em ditaduras que ditam o modo como os indivíduos devem ser e viver.
Na busca pelo ideal de sucesso determinado pelo status quo, os personagens buscam imagens que escondam as suas vidas pobres e sem qualquer poder de questionamento que se agarram aos padrões de maneira acrítica. Como diz Lester em dado momento do filme – “Vendemos a alma ao diabo porque é conveniente” – e, assim, vivemos vidas vazias e secas, como se fôssemos felizes e livres. Mas, não somos. Somos apenas representações fúteis de uma sociedade fútil. Somos somente aparências de sanidade e normalidade de uma sociedade doente. Estamos apenas padronizados, vivendo as nossas belas e cultuadas vidas idiotas.