Quem não sonhou e reforçou sua crença no amor ao ver o filme Pretty Woman? Uma garota de programa que é arrebatada pelo amor de um homem rico, que a leva para viver o conto de fadas para sempre.
Na vida real, as coisas começaram como num lindo conto, mas seu desenrolar foi bem diferente. De repente, em tempo recorde, a vida de moça pobre interiorana, que tenta a vida fazendo programas na cidade grande, é bombardeada com tudo o que sempre sonhou. É um sonho feito de viagens internacionais, casamento perfeito, luxo e família. Ela mal pode acreditar que teve tamanha sorte. Finalmente a vida lhe sorriu.
Ela sabe que ele era assíduo frequentador de prostíbulos, mas agora que ela chegou, vai ser diferente, ele não precisa mais disso. Ela sabe que ele largou a mulher com um bebê pequeno para estar com ela, mas ele lhe diz que com ela é amor de verdade e, portanto, com ela não vai acontecer.
Ela ouve relatos da boca do próprio marido de que ele teria agredido e tentado matar a ex mulher, mas acredita que com ela isso não vai acontecer, afinal, ele a “ama de verdade” e a outra, ele diz “nunca ter amado de verdade”. A ex tinha muitos defeitos, mas ela é perfeita.
Ela sabe que seu passado pode pesar, mas ele diz que isso não importa, que o amor deles é maior e conserta tudo. Basta que “ela seja só dele”.
Daí chega o bebê e, junto com ele, vem a fase de desvalorização. E vem com força. As agressões verbais, as humilhações, o passado esfregado na cara sem piedade, usado reiteradas vezes para justificar seu tratamento degradante, as ameaças de tirar-lhe a filha e mandá-la de volta ao “puteiro de onde a tirou”. “Quem vai acreditar numa puta?”
Ele despreza sua família, os chama de pobres e vagabundos. Ela não conta nada, não quer que saibam como ele é de verdade, finge felicidade constante, ninguém imagina o que passa.
Ela não raciocina mais, se desespera, quer seu príncipe de volta, não sabe “o que fez de errado” e porque ele “mudou”. O que eça não sabe é que ele não mudou, está apenas repetindo o ciclo pelo qual ela mesma passou, pois é nele que encontra seu gozo.
Ela fareja seus comportamentos, sabe que ele voltou (ou talvez nunca tenha deixado) à rotina dos prostíbulos. Mais tarde, no computador dele, peritos identificariam acessos a sites de prostituição.
Ela, então intui, incrédula, que o ciclo está se repetindo com um novo alvo. Ela sabe de como aquele homem gosta de exercer poder sobre mulheres em busca do sonho. Ele sabe que buscá-las num prostíbulo é um modo fácil de tê-las nas mãos. Dar de presente o sonho e depois controlar e desvalorizar alguém com um passado comprometedor não é tarefa difícil.
Ela sente se aproximar o momento em que será descartada, posta no lixo como a ex com um filho pequeno. Sim, será substituída. A dor dilacerante a consome, a culpa por ter sido a outra lhe faz repetir, “talvez eu mereça isso”.
Aquele constante “talvez eu devesse me esforçar mais” reforça a ideia de que poderia ter feito melhor para não afastar o homem que um dia tirou seus pés do chão. “Nunca vou conseguir brigar pela guarda de minha filha com alguém na posição dele” reforça o medo de se mover para fora da relação.
Ela o confronta, quer a verdade. Recebe insultos, ameaças e a mentira. “Você está louca, está imaginando coisas.”
Consumida pelo desejo de ter seu sonho do começo de volta, pede a um detetive que traga provas do que ela já tem certeza, de modo a deixá-lo sem saída. “Quem sabe com tudo às claras, as coisas se acertam?”
Ela o confronta de novo, mas agora tem provas. Tudo igual. O dinheiro, os presentes, as promessas o pedido de exclusividade. Como foi com ela… bem ela, que pensou que seria a única e para sempre…
Ela o expõe, mas não sabe que expô-lo com a verdade irrefutável provoca a fúria narcísica em homens abusadores: “Como ousa me expor usando meu próprio dinheiro!”
Ele “se sente traído” e a agride. Mas a reação vem. E agora?
Sabemos o desfecho e também sabemos qual é a opinião pública a respeito dessa mulher que, olhando de fora, é uma assassina cruel, mas olhando de dentro, já não temos tanta certeza assim.
Sabemos que, para a família que perdeu um ente querido, talvez haja somente a obrigação de lidar com a dor da perda e não aquela de buscar a fundo o que de fato ocorria e ocorreu. Quando perdemos alguém que amamos, não nos questionamos se é alguém bom ou mau, desejamos justiça. É compreensível, me compadeço de cada familiar que, seja como for, amou aquela pessoa.
Mas sabemos também que, talvez, o número de feridas no corpo daquela mulher não seja visível para a opinião pública a ponto de fazer-nos entender o que a levou a se defender e, em seguida, cometer um ato tão extremo.
Contudo, vale o questionamento:
Quantos de nós, com um passado reprovável e diante da constatação de ter matado alguém “poderoso”, ainda que em legítima defesa e numa reação hiper vigilante à agressão, não se desesperariam com medo de ninguém acreditar? Afinal era a versão de “uma ex puta” sobre a vida de um grande empresário. Quem não pensaria, tomado pelo desespero, em esconder o corpo? Não sei, mas posso intuir que muitos, naquela situação, teriam tido os mesmos medos e as mesmas reações.
Talvez, as cicatrizes no corpo dessa mulher não sejam visíveis ao público comum, e por comum, entenda-se pessoas que jamais foram submetidas a violência psicológica diária. Pessoas que não sabem o que é ter a sensação de impotência e pequenez diante de gente poderosa, manipuladora e perversa que com sua língua afiada, nos faz encolher até atingirmos dois centímetros de altura.
Mestres ilusionistas que parecem irretocáveis a todos, mas que na intimidade, são déspotas cruéis, sem compaixão, empatia ou escrúpulos. Talvez, essas cicatrizes não sejam visíveis aos olhos de quem nunca sentiu a dor das feridas INCURÁVEIS que a violência emocional e psicológica abre em suas vítimas.
Talvez, se no momento em que apertou o gatilho, ela estivesse toda machucada, com ossos quebrados, cicatrizes velhas e novas, com sangue escorrendo no rosto, a veríamos de outra forma. O que nós talvez não saibamos é que ela estava, de fato, toda machucada, assim como tantos leitores dessa página estão nesse momento, desejando acabar com a própria vida, tamanha a dor que sentem diariamente, e que ninguém vê, ninguém acredita, ninguém entende.
Talvez o reconhecimento da legítima defesa nesse caso fosse um marco no combate à violência psicológica que assola a humanidade desde sempre e aniquila a vida, em especial, de mulheres amedrontadas e reféns de um ideal romântico do qual não querem abrir mão, tolerando abuso de todo tipo por toda a vida.
Um marco, não só pela representatividade do caso, mas pela mensagem que, não importa quem você seja, além do tapa que você dá com facilidade, sua violência psicológica é crime; é uma dura agressão à integridade do outro e contra ela, é lícito se defender.
Essa violência velada, insidiosa, que quase sempre culmina em tragédias em desfavor das vítimas e não dos agressores e para a qual até hoje não encontramos um modo de freia-la, vez que não conseguimos enxergá-la ou explicá-la facilmente.
“Falam que o conto de fadas acabou. Pergunto: Qual conto de fadas? Não me lembro de ter lido em ‘Cinderela’ que o príncipe a humilhava. Não me lembro de ter lido que o príncipe tirou a princesa do lixo e que ela deveria, por conta disso, ser submissa às suas vontades pervertidas e humilhantes porque se tornara sua esposa” (Elize Matsunaga)
Hesitei por muito tempo em escrever a respeito. Tempo demais, não vou mais me calar. Sim, muitos discordarão dessa minha opinião, mas eu tenho direito a ela, compartilho com meus leitores e peço respeito daqueles que pensam de forma diversa.
Sim, eu sei que haverá quem leia duas frases do texto, distorça tudo e diga: Você está justificando a violência? A essas respondo: Não, estou discorrendo sobre a necessidade de começarmos a enxergar a violência verbal, emocional e psicológica como algo grave que deve ser levado à sério e desestimulado a todo custo, pois é o prenúncio da violência física que faz os números do feminicídio atingirem índices alarmantes em todo o mundo.
Aproveito a oportunidade para convidar aqueles que discordam, a ler um pequeno trecho do que era a vida com aquele homem e o que essas coisas têm em comum com as relações tóxicas, para, só depois, tirarem suas próprias conclusões.
Sou Lucy Rocha, advogada, coach e vítima de violência psicológica, emocional e física.
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TRECHO DE REPORTAGEM A RESPEITO DO SEGUNDO DIA DE JULGAMENTO DE ELIZE MATSUNAGA.
“Após resistir a detalhar os xingamentos, Dias (o delegado chamado a testemunhar) elencou as ofensas a pedido da advogada de defesa Roselle Soglio. O delegado disse que o empresário chamava a mulher de “prostituta de quinta categoria”, “vagabunda”, “p***”, que “ela só servia para abrir as pernas” e que “o que ele queria dela era um filho”. O casal teve uma menina um ano antes do crime. Outras ofensas eram dirigidas a Elize pelo marido, disse o delegado, mas sobre o pai dela – hoje falecido. “Ele chamava o pai dela de vagabundo e dizia que não queria a filha deles criada por esse tipo de gente”. (DEGRADAÇÃO DA IDENTIDADE, AUTOESTIMA E DIGNIDADE)
O delegado afirmou que o clima entre o casal “estava péssimo” antes do crime, uma vez que Elize desconfiava de relações extraconjugais do marido e teria confirmado ao menos uma delas por meio de um detetive, contratado dias antes do crime. O detetive Willian Coelho de Oliveira depôs ontem pela acusação e relatou ter presenciado o marido da ré com uma mulher, em um bar e em um restaurante, como se fossem namorados.(PROMISCUIDADE CONTUMAZ)
Hoje, no depoimento, Dias afirmou que a amante era garota de programa de um mesmo site de relacionamentos por meio do qual Matsunaga conhecera Elize. Segundo o policial, em depoimento após o crime, ela afirmou que o empresário a presenteara com um veículo Pajero blindado e a pagava com R$ 27 mil mensais -o acordo era que ele tivesse “exclusividade” e que ela retirasse suas fotos do site de relacionamentos.(REPETIÇÃO DO CICLO FEITO COM ELIZE)
Elize chorou em vários momentos e teve de ser amparada.(DOLOROSO CONSTATAR E RECONSTATAR A VIOLÊNCIA SOFRIDA)
Indagado pelo advogado de defesa Luciano Santoro se Elize sofreria insultos do marido – como ela já havia dito à polícia-, o delegado admitiu que sim, mas não quis declinar os termos porque, segundo ele havia “mulheres no plenário”. Além da plateia, composta por advogados e estudantes de direito, havia mulheres também nas equipes de acusação e defesa, entre os profissionais de imprensa e entre os jurados, nos quais quatro são mulheres, e três, homens. Ele só detalhou quando Soglio, lembrando-o que ele estava sob juramento. (XINGAMENTOS TÃO PESADOS QUE CONSTRANGEM)
Abordado pelo promotor, José Carlos Cosenzo, sobre a fonte dessas informações, o delegado informou que elas partiram não apenas da ré confessa, como de duas funcionárias da residência do casal que também prestaram depoimento.(TESTEMUNHAS QUE VIVIAM NA INTIMIDADE DO CASAL)
Sobre o casal, o policial disse que, durante as investigações, descobriu que Elize e Matsunaga seriam bons atiradores, já que ambos eram praticantes de caça esportiva – chegaram a ir à África com esse propósito antes da crise conjugal. Dentro da casa, após o crime, os policiais localizaram um bunker com toda sorte de armas. “Havia desde revólveres antigos, de colecionador, até fuzis de última geração. Ele [a vítima] cuidava dessas armas como cuidava de um filho”, definiu. O empresário foi morto com um tiro de um revólver Magnum 357, mas o MP alega que ele foi esquartejado ainda vivo – o que a defesa refuta. (COLECIONISMO, OBSESSÃO POR ARMAS, CUIDADOS COM COISAS MAIOR DO QUE COM PESSOAS)
A testemunha relatou ainda ter ouvido no inquérito policial depoimento de um reverendo que era uma espécie de conselheiro do casal. De acordo com ele, esse religioso teria alertado Matsunaga sobre a necessidade de tratamento psiquiátrico de Elize, porque ela estaria “psiquicamente descompensada”. (GASLIGHTING, RECRUTAMENTO DE POSSIBILITADORES E FLYING MONKEYS COM A ALEGAÇÃO DE QUE A PESSOA É DESEQUILIBRADA)
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….enfim, pontos demais em comum com qualquer relação abusiva e que, para o nosso próprio bem, tais pontos não devem ser ignorados. Presto minhas condolências à família, mas espero que a justiça seja feita.
Imagem de capa meramente ilustrativa: cena do filme “Uma linda mulher“.