Por Monaliza Montinegro
Um Brasil diferente. É isso que todos desejam. Opinam, discutem, brigam, gritam, compartilham informações na “era da reprodutividade técnica”[1]. Estamos “vivendo em um país sedento, um momento de embriaguez”[2]. E nos intervalos de sobriedades, há uma realidade que precisa ser discutida. Uma realidade social dura, escancarada aos olhos de todos e uma realidade política que não mais se sustenta.
O legislativo parece ter perdido o sentido da norma. Políticos esquecem o fim social e pacificador da legislação e passam a coordenar suas ações sempre agindo contra a oposição. Eleitores apoiam suas escolhas no lado puramente partidário, como se os partidos e as pessoas que os compõem fossem mais importantes do que o próprio tema que está sendo votado ou discutido. Com isso, chega-se a um resultado que não agrada nem a pobres, nem a ricos e, tão menos, aos miseráveis.
Um dia me disseram/Quem eram os donos da situação/ Sem querer eles me deram/ As chaves que abrem essa prisão. (Engenheiros do Hawaii)
Não nos tornamos gigantes, como já foi ventilado pela grande mídia. Sequer suportamos o peso de nossas ideias diante do imenso bombardeio de mensagens mascaradas de bondade. Grandes são os que olham para todos os lados, não apenas para uma direção.
A verdade é que nos sentimos pequenos perante tamanhas arbitrariedades. Mas, o que precisamos mesmo é tirar os joelhos do chão e, de pé, começar a dar saltos mais altos. E, às vezes, é preciso muita iniquidade para que isso ocorra, para que as mentes sejam inquietadas.
A história nos mostra que quando somos empurrados para trás da forma mais brusca ganhamos impulso para começar caminhar com mais força e tenacidade. Foi preciso que a ditadura militar atingisse o seu mais alto grau de estupidez para que todos contra ela se rebelassem.
E tem sido assim. Quando o CONAMP tentou suprimir da Defensoria Pública o direito ao manejo de ações coletivas, ela se fortaleceu. Todos passaram também a vestir o verde. O STF ficou verde, o Senado ficou verde. Até o Cristo Redentor ficou verde, da cor da pátria amada, que é também a bandeira da Defensoria Pública. Não só a luta da defensoria fortaleceu, como também fortaleceu aos necessitados que terão cada vez mais seus corações invadidos pelo verde da esperança em um mundo mais próxima da justiça.
Cada vez que tentam impor o cinza, as cores aparecem como resposta. Cada vez que as pedras são atiradas, mais preconceitos são tirados do caminho. Quem imaginou um dia um padre e um pastor unidos em um ato de amor lavando os pés de uma transexual? Quem imaginou evangélicos da Tradicional Igreja Batista levantando a bandeira Deus Cura a Homofobia? Quem imaginou um Papa levantar a bandeira colorida? As cores invadirem as redes sociais? As cores do respeito à diversidade. As cores que mudam a vida.
Enquanto a vida imita o vídeo, a lucidez quer ter seu lugar. Por isso, mais do que nunca, a atitude é uma necessidade e todo o descaso do Estado e da própria sociedade com os adolescentes e adultos crescem em um mundo que a eles nada oferece, todo esse desejo forçado de colocar na prisão quem já está preso pela desigualdade, fará um virada na história. Quem vier viver, “verá”. É só querer “enxergar”.
Habermas e o processo de comunicação.
Habermas tem razão. A porta de entrada para essa mudança é uma comunicação livre, racional e crítica. O aspecto da legitimidade da norma só pode ser desenvolvido adequadamente com base no conceito de autonomia e democracia, com base na possibilidade de que os destinatários das normas do direito se vejam também como autores dessas normas.[3]
Para Habermas todas essas “patologias sociais” são resultados de perturbações na reprodução simbólica do mundo da vida. Perturbações na reprodução cultural e midiática, as quais, para ele, tem levado a fenômenos de perda de sentido, provocando na integração social estados de anomia, e nas socializações produzindo psicopatologias[4]. A realidade é que o foco de preocupação social deveria iniciar com uma reforma nos meios de comunicação, uma vez que esses têm se mostrado mais influentes nos últimos tempos do que a própria pena de prisão.
O que acontece é que todo o processo de comunicação tem se voltado a favor do individualismo, da meritocracia, do direito penal máximo, do isolamento daquelas pessoas que são consideradas indesejáveis e do culto ao direito penal do inimigo. Dessa forma, toda a sociedade passa a crer e a coordenar suas ações como se de fato vivêssemos em um estado de guerra e toda a solução para o caos estivesse na ordem penal, na intimidação e na sanção.
Despreza-se a moral, a família, os costumes, a consciência, a mídia, a religião e todos meios de vigilância que exercem mais influência no indivíduo do que o próprio sistema penal. Assim, fica facilmente camuflado o papel da mídia, principalmente na construção da realidade social e no processo de escolha dos inimigos da sociedade.
A produção do lema “país da impunidade”, onde temos um dos mais altos índices de encarceramento do mundo, nos faz esquecer que cultivamos o direito penal mínimo para quem detém o poder e o direito penal máximo para que esteja afastado dele. E essa estrutura é observada desde o processo de fabricação de leis até o processo de aplicação e execução da sanção. E assim seguem de mãos dadas a ignorância, a manipulação e a desigualdade.
Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago x Realidade Atual:
Nesse cenário vem bem a calhar a ideia de José Saramago, no livro Ensaio a Cegueira, onde é criado um ambiente semelhante ao que vivemos hoje. No metáfora de Saramago, aos poucos muitas pessoas vão sendo contagiadas por uma cegueira branca e a responsabilidade daqueles poucos que conseguem ver vai aumentando até que apenas uma única pessoa no livro, a mulher do médico, tenha visão.
O contexto narrativo descreve da forma mais cruel as reações do ser humano ao estado de necessidade, a baixa auto estima, ao abandono etc. Mostra também como é fácil o contágio dessa cegueira através do medo, no momento em que até os Santos da Igreja ficam de olhos vendados. Saramago mostra que um mundo cego é um mundo sem ética, sem moral e cheio de barbárie.
A narração mostrou várias faces da natureza humana e a principal consequência dessa falta de visão pode ser vista na descrição da primeira cegueira ocorrida no livro, quando o personagem ficou cego ao dirigir seu veículo e “de repente, a realidade tornou-se indiferenciada a sua volta”.[5]
E assim segue o drama, onde o escritor consegue narrar bem três tipos de cegueira do mundo contemporâneo. A primeira é a cegueira daqueles que não possuem qualquer poder de autodeterminação, uma vez despidos de sua individualidade, passam a se identificar como coisa abandonada, desconhecendo a noção de individuo quando são isolados em um antigo hospício e esquecidos pelo Estado; a segunda, a cegueira daqueles que são dominados pelo medo e com isso passam também a cometer atrocidades; e a terceira, e mais cruel, a cegueira dos opressores que se aproveitam do momento em que todos estão cegos para mostrar sua face mais cruel.
Trazendo para a nossa realidade, o mais preocupante é a cegueira ocasionada pelo medo e esse trecho ilustra bem isso: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.”[6]
E o medo cega e segue dominando nações. Essa foi a temática de Mia Couto em uma conferência sobre segurança pública, citando o poeta Eduardo Galeno, enfatizou: os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras… E completou o escritor moçambicano: há quem tenha medo que o medo acabe.[7]
Nesse momento, em que em o medo reduz o homem à essência humana, quando o egoísmo mostra a sua pior face, vem a pergunta de Agostinho Ramalho Marques Neto para inquietar nossos corações quem nos salvará da bondade dos bons? [8]Quem na democracia nos salvará do medo da maioria? Quem nos salvará daqueles se dizem compadecidos com a situação dos adolescentes renegados e mesmo assim confessam conscientemente que desejam mandá-los pra prisão? Daqueles que afirmam preliminarmente não serem racistas mas são contra cotas para negros? Dos que se dizem não homofóbicos mas são contra casamento homoafetivo? Dos que criam o cenário para que os que se dizem reis rasguem as leis? Dos que operam as leis e rasgam a justiça?
A cegueira moral de Zygmunt Bauman:
Quem nos salvará da cegueira moral que parece ser mais contagiante em tempos de redes sociais? Quem fará os bons entenderem o que concluiu Bauman que o mal não está restrito às guerras ou às circunstâncias nas quais pessoas atuam sob condições de coerção extrema, que o mal maior está dentro de cada um, na frequência na insensibilidade diária diante do sofrimento do outro, na incapacidade ou recusa de compreendê-lo e no desejo de controlar a privacidade alheia?[9]
Como fazer as pessoas entenderem que maldade e a miopia ética se ocultam naquilo que consideramos comum e banal na vida cotidiana e sobretudo na forma que externamos isso. Como conter o botão de “compartilhar” das redes sociais, que dá liberdade ao emissor da mensagem na medida em que aprisiona suas vitimas? Dos que compartilham as notícias sem questionar a sua veracidade? Como explicar as pessoas que nem tudo que está ali é certo, se a maioria sequer consegue distinguir humor de realidade? Como fazer o olhar se voltar para quem não está nas redes sociais, se essas pessoas estão em algum lugar no mundo em que não podem ser vistas?
Teoria da Cegueira Deliberada:
Encontrei uma explicação para isso na Teoria da Cegueira Deliberada. Aquela criada pela Suprema Corte Americana, também conhecida como Conscious Avoidance Doctrine” (doutrina do ato de ignorância consciente), que deu origem a “Teoria das Instruções da Avestruz”, que os concursos públicos adoram.
A teoria criada para explicar o comportamento criminoso no delito de lavagens de capitais aduz que há um comportamento criminoso quando o agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagens dela decorrentes e age como se fossem um avestruz, enterrando a cabeça deliberadamente para não ver.
Fez-me pensar que as bases dessa teoria poderiam ser transportadas para a cegueira humana. A cegueira descrita por Saramago “dos cegos que veem e dos cegos que vendo, não veem.” E por fim, cheguei a conclusão de que muitos de nós somos coautores das atrocidades praticadas todos os dias contra as pessoas que são excluídas da sociedade, muitos que se colocam deliberadamente no estado de cegueira para dele auferir vantagem.
Quem ocupa o trono tem culpa/Quem oculta o crime também/Quem duvida da vida tem culpa/Quem evita a dúvida também tem” (Engenheiros do Havaí)
Vejo uma luz na esperança de que as crianças, adolescentes e todos os adultos que estão nessa berlinda, possam a ter consciência de que também do outro lado existe alguém que enxerga um mundo através deles. Todos lutando para que ninguém venha a limitá-las como a música diz no refrão: “somos quem podemos ser/sonhos que podemos ter”
Nesse sentido, a metáfora do escritor português deixou sobre os nossos ombros o peso que carregou no livro uma única mulher. Isso me faz crer em um mundo real no qual seja possível a sabedoria vencer a falta de percepção. Talvez, a claridade ocasionada por essa “cegueira branca” provoque um intervalo na escuridão, assim como na composição musical.
Nesse ponto, em que convergem a literatura, a música e a realidade, José Saramago, Bauman e Gessinger tem nos passar uma mensagem: quando muitos estão ficando cegos, devemos incorporar com mais altivez a responsabilidade de termos olhos para ajudar o outro a recuperar a lucidez e a procurar dentro de si algo que está se perdendo a cada dia: “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. Esse talvez seja um dos caminhos para salvação.
Esse artigo foi publicado originalmente em nossa página parceira:
[1] Disponível em http://ideafixa.com/wp-content/uploads/2008/10/texto_wbenjamim_a_arte_na_era_da_reprodutibilidade_tecnica.pdf (acesso em 04.07.2015)
[2] Disponível em http://letras.mus.br/engenheiros-do-hawaii/12899/ Somos Quem Podemos Ser (acesso em 04.07.2015)
[3] NOBRE, Marcos e TERRA, Ricardo. Um Guia de Leitura de Habermas. Direito e Democracia. Malheiros Editores LTDA. São Paulo. 2008.
[4] HABERMAS, Jurgen. Uma conversa sobre questões da toeria política. Novos Estudos. Cebrap: São Paulo.1997.
[5] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das Letras. 24º reimpressão, 2002.
[6] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das Letras. 24º reimpressão, 2002
[7] Disponível em http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2013/05/31/mia-couto-ha-quem-tenha-medo-que-o-medo-acabe/(acesso em 04.07.2015)
[8] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994
[9] BAUMAN, Zygmunt. LEONIDAS, Donskis. Cegueira Moral: A perda da sensibilidade na modernidade líquida.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
Sobre a autora:
Monaliza Maelly Fernandes Montinegro. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; Analista do Seguro Social com formação em Direito; Aprovada no concurso da Defensoria Publica do Estado da Paraíba.
Email: monalizamaelly@hotmail.com
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