Esta é uma continuação da coluna da semana passada, onde a partir da fábula da Cigarra e a Formiga, eu discutia a forma como os artistas são vistos na sociedade, com os preconceitos que ainda resistem.
Uma vez, fui apresentar um espetáculo em uma Biblioteca Municipal, na periferia de São Paulo, num domingo de manhã. Depois de uma hora de viagem na mesma cidade – coisas de São Paulo – chegamos, montamos cenários, apresentamos, desmontamos. Na saída, enquanto carregávamos o material, rindo e conversando, ouvi o seguinte da encarregada pela Biblioteca, um pouco ofendida pela alegria alheia:
– Mas vocês só se divertem! Quando é que vocês trabalham?
Pensei não em uma, mas em várias respostas geniais. Mas só meia hora depois de ter ido embora. Nem lembro o que foi que falei ali na hora. Mas fiquei pensando naquela mulher. Ela nos recebeu naquele domingo de manhã como se fosse um favor ela estar lá para abrir as portas. Não era. Era parte do trabalho dela, uma das atividades da biblioteca que ela dirigia. Um trabalho importantíssimo de formação de público, uma apresentação oferecida gratuitamente à população, que não teve mais que 15 pessoas na plateia. Pelo que conversamos ali, vimos que o grande problema foi a falta de empenho dela na divulgação. Só foram as pessoas que iam sempre e nem alguns dos funcionários que estavam lá, sabiam que a apresentação ia acontecer.
A pessoa errada na função errada, provavelmente, o que a levava a se indignar com pessoas que pareciam felizes com a profissão que escolheram. Se é que ela considerava profissão, porque muito gente acha que não passa de um hobby… Mas talvez seja essa a questão. Em uma dessas frases que costumam aparecer no Facebook, Confúcio afirma:
“Trabalhe com aquilo que gosta e não terá que trabalhar um dia sequer na vida”
Não sei se é realmente do Confúcio (ou da Clarice Lispector), mas a frase acaba por dar razão à Mulher da Biblioteca. Todo mundo que estava lá naquele dia, gostava do que fazia. Logo, não estávamos trabalhando ou pelo menos, do ponto de vista dela, não pareceu que estávamos.
Eu gosto do que faço e acho que gostaria de trabalhar em uma biblioteca também, se fosse o caso, mas é evidente que a Mulher da Biblioteca não está feliz e, naquele momento, resolveu bancar a formiga pra cima das cigarras. O que ela não percebeu é que a vida pode ser muito mais do que a moralidade maniqueísta de uma fábula, que dá só duas opções de certo e errado, sem margem para qualquer outra interpretação. A formiga pode ter um pouco da cigarra e vice-versa.
E muitos artistas têm muito de formiga. É preciso, porque muito do trabalho não acontece só na sala de ensaio ou nos locais de apresentação. Tem muito projeto para fazer e todas as questões burocráticas que envolvem uma atividade comercial. Aliás, uma das questões que denunciam a forma como a cultura é vista, tem impacto exatamente no aspecto comercial da atividade: a meia-entrada.
Essa é uma briga antiga da classe, que sempre questiona por que existe essa obrigatoriedade, que vale para espetáculos, mas não vale para outras atividades. Estudantes não pagam meia nos consultórios, nem pagam meia nos supermercados. Por que podem pagar meia em um espetáculo? Dá para entender o princípio, o de facilitar o acesso de uma parte da população à cultura, mas é a imagem recorrente da cortesia com o chapéu alheio, já que o governo não paga a outra metade do desconto. Essa conta tem que ser quitada pelos produtores dos espetáculos, uma conta que é cobrada deles, mas não de médicos ou de donos de supermercado. Isso acaba tendo um efeito que pode ser o contrário do que se pretende, já que reverte no preço do ingresso.
O que leva a outro mito, o de que teatro é caro. Sobre isso, em uma entrevista, duas semanas atrás, Antonio Fagundes falava das milhares de pessoas que pagam quase mil reais por um ingresso para uma luta de UFC, sem levantar questionamentos, mas que se recusam a pagar muito, muito menos por um espetáculo.
Quando um grupo encontra preconceito dentro de uma sociedade, seja esse grupo religioso, étnico ou profissional, como nesse caso, a tendência é ele desenvolver um comportamento superprotetor sobre si próprio. E acontece isso com as cigarras. Lembro de uma vez, quando ouviu a notícia de que um teatro havia sido assaltado, uma atriz comentou:
– Mas não pode! Um teatro é um espaço sagrado!
Ok, é sagrado. Mas não dá pra dizer que seja mais sagrado do que um consultório ou qualquer outro lugar onde uma atividade se desenvolva, seja ela tocada por uma formiga, uma cigarra ou um inseto geneticamente modificado com o melhor de cada um.