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A diferença que faz gostar da sua profissão

Parte 1

Na fábula, a Cigarra vive feliz, cantando o dia inteiro, enquanto a Formiga está sempre trabalhando, sempre estressada, preocupada em armazenar cada vez mais comida. O fim da história apresenta uma moral que mostra que a formiga estava certa e a cigarra, errada.

Esses dias, um amigo publicou um post em que um jornal anunciava: Afinal é tudo mentira: As formigas são mesmo preguiçosas. A matéria afirmava que “apenas 2,6% das formigas estava trabalhando o tempo todo durante as observações, enquanto 71,9% passavam metade do dia sem fazer nada. As formigas que apareceram o tempo todo inativas eram 25,1%”.

Com a capacidade de nos fazer pensar que só mesmo o Facebook tem, este post me levou a duas linhas de raciocínio: Na primeira, uma pequena meditação sobre essa imprensa, que não está perdoando a intimidade de ninguém, expondo até os insetos nas manchetes ao lado dos escândalos do futebol e da política. Já a segunda linha de raciocínio, confesso que me levou a sentir um prazer bem egoísta. É que nunca gostei dessa história da Cigarra e a Formiga e não tinha como não ver uma pequena vingança no fato da Ciência desautorizar a fábula.

Normalmente, eu sou o primeiro a defender que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Afinal, se você quer criar uma história onde a Lei da Gravidade foi revogada ou onde explica que Buracos de Minhoca são feitos, realmente, por minhocas espaciais, vai em frente, a criação é sua e toda vez que você cria uma história, você inventa um universo. Mas só dessa vez e – volto a dizer – por motivos absolutamente egoístas, eu comemorei o placar Ciência 1 x 0 Fábula. Mas vou ser discreto e não vou sair na janela e gritar “Chupa, Esopo!” nem qualquer coisa parecida.

É que é difícil ser artista, seja no Brasil ou em qualquer lugar. Uns 90% da classe passa a vida ouvindo a velha piada:

– Você faz o quê?

– Teatro.

– Ah, bacana… E trabalha com quê?

Claro que a fábula não é a culpada por essa situação. Acho. Mas o preconceito é grande e eu sempre tentei entender porque essa não é uma profissão que é vista como qualquer outra. Tem alguns pontos que podem ajudar a entender:

1 – A dificuldade em ganhar dinheiro. As condições melhoraram muito nos últimos anos, mas a maioria dos atores de teatro que eu conheço está em vários espetáculos ao mesmo tempo, alguns chegam a estar em mais de sete. Podem ter dois ou três em cartaz na cidade (um adulto, um infantil e um alternativo, por exemplo) e os outros fazendo viagens ou apresentações ocasionais para escolas. Isso significa ter todos estes espetáculos na cabeça, com seus textos, marcações e contra-regragens. Não é pouca coisa. Mas é o jeito para sobreviver. Lembro que meus pais levaram uns bons anos pra aceitar a profissão que eu tinha escolhido, mesmo quando eu mostrei que podia viver daquilo. E ainda assim, eles só aceitaram (ou melhor, se conformaram), quando fui escrever para a televisão. O que leva ao próximo ponto:

2 – A glamourização da profissão. Ser artista tem uma aura, uma distinção que vem desde muito antes de Hollywood investir pesado para transformar atores e atrizes em semideuses. Lembro de um texto em que o Eça de Queiroz dizia que atores são perigosos, porque por volta do começo da tarde, quando todos os homens já estão suados e com as roupas amarfanhadas, os atores acabaram de acordar e de se banhar, vestindo roupas que acabaram de tirar do armário. Como dá pra ver, ao mesmo tempo em que a profissão gera uma certa admiração, gera também um certo menosprezo. Até a década de 70, no Brasil a profissão de artista não era regulamentada e artistas eram obrigados a usar a mesma carteira que permitia o trabalho para prostitutas, como conta Fernanda Montenegro em uma entrevista recente:

Pertenço à geração de artistas que ainda tirou carteirinha de prostituta na polícia. Naquela época, artista era prostituta, viado ou gigolô. (…) Minha própria família tinha vergonha, mas depois calha de dar certo e você vira um herói. Mas, se não dá, você continua sendo um louco“.

Claro que só passa pela glamourização aqueles que conseguem dar certo, o que por aqui é traduzido como “fazer sucesso na televisão”. Mas toda a classe é vista da mesma forma, seja quem está na novela ou quem está em sete espetáculos. Ah, e por falar em “dar certo”:

3 – O estigma do teste do sofá. O preconceito diz que artistas são vistos como grandes libertinos, não hesitando em trocar sexo por uma oportunidade de trabalho. Existem casos, claro, mas não é a realidade da maioria dos profissionais. A questão passa mesmo é pela glamourização e pela exposição. Não vou aprofundar muito a discussão aqui, só dizer que médicos transam nos hospitais, durante seus plantões. E engenheiros transam em seus escritórios, dizendo que estão trabalhando até mais tarde. A diferença é que, se eles forem descobertos, nada disso vai sair no jornal. Já um artista, vira notícia até quando atravessa a rua, como prova o Caetano.

4 – Só trabalha nisso quem gosta muito do que faz. E isso faz toda a diferença. Por que é difícil, como qualquer outra profissão. Mas além das dificuldades, ainda tem a questão do preconceito. Uma vez, fui fazer uma apresentação em uma Biblioteca Municipal, na periferia de São Paulo. Chegamos, montamos cenários, apresentamos, desmontamos, tudo normal. Na saída, enquanto carregávamos o material, rindo e conversando, ouvi o seguinte da encarregada pela Biblioteca, um pouco ofendida pela alegria alheia:

– Mas vocês só se divertem! Quando é que vocês trabalham?

Bom, pensei em uma resposta genial. Mas como a prosa correu solta e essa coluna ficou grande, vou ter que parar por aqui e dividi-la em duas pra continuar essa história na semana que vem. Juro que não é pra obrigar ninguém a voltar, é que ficou maior do que eu pensava. Mas não demora, prometo!

Leia a continuação aqui. 

Fabio Brandi Torres

Nasceu 15 dias antes da chegada do Homem à Lua e é dramaturgo, roteirista, tradutor e produtor, mas conforme a ocasião, também pode ser operador de luz, de áudio, bilheteiro, administrador e contrarregra, ainda que não tenha sido camareiro, mas por pura falta de oportunidade. Questão de tempo, talvez, já que quando se faz teatro por aqui, sempre se cai na metáfora futebolística do bater escanteio e correr pra cabecear. Aliás, se aposentou do futebol na década de 80, quando morava em Campos do Jordão, depois de uma derrota por 6×0 para o time de uma escola adversária, cujo nome não se recorda. Ele era o goleiro.

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