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A discriminação racial na escola: existe?

Conversamos com a professora Eugênia Luz, mestre e doutora em Educação, que realizou um estudo no qual tentou garimpar, no cotidiano escolar, mecanismos de reprodução do racismo para, ao detectá-los, potencializar movimentos de superação.

De tal estudo surgiu o livro “Garimpando pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola”. O livro, publicado pela Editora Appris, terá o seu lançamento no dia 17 de abril, na Universidade do Estado do Amapá.

Segue a entrevista.

O que a despertou para a temática do livro?

Minha preocupação com a questão racial já vem de há alguns anos. Se olhar um pouco mais para trás, eu diria que ela surgiu a partir de uma inquietação ainda meio difusa, desde a minha chegada ao Brasil, na década de 1980, ao abrigo do Programa de Estudante-Convênio de Graduação PEC-G, do governo brasileiro.  Um desconforto que foi ganhando corpo à medida que fui percebendo um descompasso entre a imagem do Brasil propagada no exterior, no caso em Cabo Verde e a realidade percebida dentro de casa. Indagações que foram crescendo e ganhando formas mais concretas e que acabaram resumidas em um textinho de minha autoria chamado “Onde Estão os Negros Brasileiros?”[1].

Fala-nos um pouco da sua vida e da sua experiência como educadora, no tocante, especialmente, à discriminação racial.

Eu venho de um país que foi colónia portuguesa até o ano de 1975 (Cabo Verde) e que viveu um processo opressivo muito grande, não obstante os movimentos de resistência que também não foram poucos. Como alunos, nós sempre fomos aqueles que, via de regra, não correspondiam às expectativas dos professores, em sua maioria portugueses. A baixa expectativa quanto ao nosso desempenho, em muitos casos, era explícito. No entanto, essa situação começou a mudar quando da independência política em 1975, com um movimento intenso de valorização da cultura cabo-verdiana e de matriz africana, na escola e em outros espaços sociais e culturais.  Passamos a usufruir de outro status e isso favoreceu o fortalecimento, de alguma maneira, da nossa identidade étnica, um processo ainda em construção, a meu ver. Ressalto que esse processo é longo e não linear, pois a questão da identidade cabo-verdiana é um tema controvertido e muito complexo.

No Brasil, embora tenha percebido a ausência da população negra nos espaços que frequentava, inclusive na Universidade Federal onde estudei Pedagogia, e ter vivido algumas situações de discriminação racial, acompanhou-me sempre a sensação de que  nos era dispensado um tratamento diferenciado, por sermos estrangeiros, embora, é claro, não estivéssemos imunes ao racismo contra o negro, em várias situações do cotidiano. Como educadora posso considerar o doutorado um marco importante na promoção de mudanças na minha percepção da questão racial, alimentando práticas pedagógicas mais inclusivas que são as que hoje eu venho adotando.

Em sua opinião, o discurso educacional destoa da prática pedagógica, quando o assunto é discriminação racial? Se sim, como isso pode ser constatado? (algum exemplo de ocorrência).

Sim, é muito perceptível esse distanciamento. Em primeiro lugar, nossas pesquisas indicam que, de modo geral, ainda hoje os professores encaram a questão racial de uma forma bem pontual, ou seja, mediante atividades culturais, em períodos específicos e nada mais. Existe uma lei que determina a obrigatoriedade da inclusão da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares, buscando valorizar as raízes africanas presentes na cultura brasileira e a refletir sobre a condição da população negra, porém, o que eu vejo é muito descaso com a questão, apesar de continuarmos propagando o discurso de uma educação democrática.

Quando a temática é discriminação, você vê diferenças consideráveis entre Portugal e Brasil, locais onde foram realizadas as suas pesquisas? Quais?

Eu vejo algumas semelhanças e diferenças. O que percebo no Brasil é que o discurso da mestiçagem e da democracia racial ainda acaba encobrindo relações de poder nem sempre bem aquilatadas pelas pessoas.  A toda hora ouvimos nossos alunos na graduação e no mestrado questionarem a inclusão do debate sobre a questão racial, alegando que o Brasil é um país mestiço em que todos são brasileiros não havendo, portanto, brancos, negros e nem indígenas. Isto ainda, infelizmente, é uma realidade. Alguns alegam que trazer essa discussão significa promover divisões no país. Todos sabemos que na perspectiva biológica não há raças, porém, é com base em uma ideia de raças superiores e inferiores que se disseminou o racismo que sustenta a desigualdade no pais e no mundo.

Em Portugal eu sinto o racismo mais explícito. Algo mais pungente, constrangedor.  Embora goste muito de Portugal, percebo que muitos portugueses ainda precisam aprender a respeitar o outro como legítimo outro na convivência. Claro que também percebe-se avanços, mas há um caminho longo a percorrer. Não sei se é pior ou melhor do que no Brasil – afinal nenhuma forma de negar o outro é boa. No tempo que passei visitando escolas  fiquei impressionada com a forma como os alunos africanos são vistos pelos professores: “são mal comportados, apresentam baixo desempenho escolar, não há disciplina em casa, são abandonados pelos pais, etc”. Isso me deixou muito preocupada. Espero poder constatar que essa realidade mudou, na próxima pesquisa que pretendo levar a cabo em Portugal, em 2016.

Você é mulher, africana, negra. Você encontrou muitas barreiras sociais em sua carreira profissional em virtude de cor, gênero e origem? 

 Sim, como apontei anteriormente, vivi algumas situações de discriminação racial explícitas em locais de trabalho, que poderiam ter se configurado como poderosas barreiras em minha carreira, se eu sucumbisse aos obstáculos. Na universidade, apesar de já ser bastante conhecida, ainda me deparo vez ou outra com situações de racismo e que tento encaminhar da melhor forma. Nossa universidade, assim como outras universidades brasileiras é racista. Por conta disso, é sempre uma grande luta para ter nosso trabalho reconhecido, o que às vezes é desgastante e desmotivador.

A quem, especificamente, você recomendaria a leitura do seu livro?

Recomendo  este livro a todos aqueles  se preocupam em construir uma sociedade e uma educação democráticas e inclusivas. Especialmente aos educadores, para que repensem suas posturas diante das diferenças, que reavaliem seus discursos e vejam o nível de incongruências de que são prenhes os discursos correntes de educação democrática e de respeito à diferença contidos no currículo oficial. E, sobretudo, que os educadores da escola básica e dos cursos de Formação de Professores das Universidades analisem com seus alunos, futuros professores, essa realidade exposta de forma parcial no livro e percebem as sutilezas por onde o racismo vai se metamorfoseando na escola.

[1] O Texto a que me refiro encontra-se no livro de fragmentos organizado por LINHARES, Célia, intitulado: Muito além de Caleidoscópios para professores e professoras. Coleção Palavras de Mestres

 EUGÉNIA DA LUZ SILVA FOSTER

Nasceu em São Vicente, República de Cabo Verde. Aos dezenove anos, deslocou-se para o Brasil, em razão de uma bolsa de estudos, no âmbito do Programa do Estudante Convênio de Graduação (PEC-G), do governo brasileiro, onde fez Pedagogia na Universidade federal de Pernambuco (UFPE). Fez Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade Federal Fluminense (FE-UFF), realizou estágio de Pós-Doutorado em Educação, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É professora Associada da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Relações Étnico-Raciais e Interculturais. Atualmente desenvolve pesquisas buscando aproximar as realidades de escolas portuguesas, cabo-verdianas e brasileiras (Amapá), no que tange à temática da Educação, Relações Raciais e Interculturais.

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