Categories: COLABORADORES

A encantada geração das rosas roubadas

Parece que faz tanto tempo, mas foi logo ali, naqueles últimos anos antes de virar o século, naquelas casas que quase não tinham computadores, às vezes um único, bojudo, que fazia aquele barulhinho inesquecível de processamento quando a gente ficava por uns quinze minutos tentando acessar a internet para poder conversar no ICQ ou nas salas de bate papo da uol. E cada conexão bem sucedida, e cada barulhinho de nova mensagem recebida, ah que emoção!

Não faz tanto tempo assim que a gente ia ao cinema, escolhia qualquer filme, às vezes assistia três ou quatro vezes o mesmo porque não havia muitas opções e um filme ficava em cartaz por cerca de dois meses. E não importava muito essa repetição desenfreada porque o filme não era mesmo o principal motivo da gente ir ao cinema, o cinema era apenas o lugar mais seguro e camuflado para duas horas seguidas (e quase sem intervalo) de beijos intermináveis.

Não faz tantos anos assim e eu ainda sinto tão fresca a memória daquelas noites, daqueles bailes, do salão de festa, das madrugadas que a gente, antes de ir pra casa, ficava rodando a cidade, procurando a casinha ideal, o lar de alguma senhorinha que tinha um jardim bem cuidado e portões de grades largas (de preferência sem cachorro), o lugar perfeito pra gente encontrar a rosa mais linda, a perfeita rosa roubada.

E então a gente consultava as amigas, pedia ajuda para escrever aquela frase manjada, aquela coisa brega que vinha no papel de carta ou na agenda, e com mãos quase tremulas a gente escrevia o bilhete secreto para aquele cara que, no meu caso, geralmente era um amor platônico.

E munidas de bilhetinho assinado apenas com as inicias (quem era mais sofisticada ainda borrifava uns pingos de perfume – geralmente era Thaty do Boticário) e a brilhante rosa roubada, a gente ia com as pontas dos pés (ou com o motor do carro desligado) até a casa do amado para consumar o ato: jogar a rosa no quintal.

Ah, e que delícia era quando nosso quintal amanhecia com uma dessas rosas! Como era bom quando o admirador realmente era secreto e a gente passava semanas investigando as possibilidades daquelas iniciais. E como era mais mágico ainda quando o admirador era justamente aquele cara, o amor platônico, aquela pessoa que nunca tinha trocado mais do que meia dúzia de palavras com a gente e horas de olhares noite adentro.

Como era bom quando esses acontecimentos singelos eram motivo para meses de um coração serelepe e descompassado, sorrisos bobos, borboletas no estômago, notas baixas nas provas de matemática, passarinhos verdes na janela, enredos para sonhos das longas manhãs de sábado, leituras profundas dos conselhos rasos da revista Capricho e do signo do amado. Até coelho na lua era motivo de longas conversa por telefone com a amiga.

Como era bom quando havia menos falas e mais troca de olhares, quando o brilho dos sentimentos se estendia por meses, quando se precisava de tão pouco para construir vastos significados.

Não faz tanto tempo assim que o nosso coração era mais amplo e sereno, que as nossas vontades eram mais simples e intensas, que as pequenas coisas tinham um peso tão grande a ponto de nos fazer flutuar.

Clara Baccarin

Clara Baccarin escreve poemas, prosas, letras de música, pensamentos e listas de supermercado. Apaixonada por arte, viagens e natureza, já morou em 3 países, hoje mora num pedaço de mato. Já foi professora, baby-sitter, garçonete, secretária, empresária... Hoje não desgruda mais das letras que são sua sina desde quando se conhece por gente. Formada em Letras, com mestrado em Estudos Literários, tem três livros publicados: o romance ‘Castelos Tropicais’, a coletânea de poemas ‘Instruções para Lavar a Alma’, e o livro de crônicas ‘Vibração e Descompasso’. Além disso, 13 de seus poemas foram musicados e estão no CD – ‘Lavar a Alma’.

Share
Published by
Clara Baccarin

Recent Posts

Tire as crianças da sala antes de dar o play nesta série cheia de segundas intenções na Netflix

Uma série perfeita para maratonar em um fim de semana, com uma taça de vinho…

1 dia ago

Você não vai encontrar outro filme mais tenso e envolvente do que este na Netflix

Alerta Lobo ( Le Chant du Loup , 2019) é um thriller tenso e envolvente…

1 dia ago

Trem turístico promete ligar RJ e MG com belas paisagens a partir de 2025

Uma nova atração turística promete movimentar o turismo nas divisas entre o Rio de Janeiro…

2 dias ago

Panetone também altera bafômetro e causa polêmica entre motoristas

O Detran de Goiás (Detran-GO) divulgou uma informação curiosa que tem gerado discussão nas redes…

2 dias ago

Homem com maior QI do mundo diz ter uma resposta para o que acontece após a morte

Christopher Michael Langan, cujo QI é superior ao de Albert Einstein e ao de Stephen…

2 dias ago

Novo filme da Netflix retrata uma inspiradora história real que poucos conhecem

O filme, que já figura entre os pré-selecionados do Oscar 2025 em duas categorias, reúne…

2 dias ago