Quando viralizou nas redes o vídeo da idosa que o flanelinha ajudou a atravessar a rua alagada, em pleno temporal do Rio de Janeiro, apostei com força no ser humano. A tal ponte com caixas que ele movia de duas em duas para ela passar era um espetáculo de imaginação, delicadeza e solidariedade.
Mas a cena incomodou quem viu ali desenhado um quadro de subserviência e desprezo. Alguns disseram que a passante não teria expressado a devida gratidão pela gentileza.
Com sinceridade, não vi um negro servindo a uma branca, como chegaram a apontar. Vi um homem amparando uma mulher. Ele, bem mais jovem. Ela, visivelmente frágil, combalida pelos anos. Vi gente ajudando gente na calamidade. Não enxerguei no episódio a ilustração do racismo estrutural da sociedade brasileira.
Falei sobre minha impressão a um grupo de certa rede social. Alguém me descreveu como uma branca habituada a negros serviçais. Observei que avaliavam meu pensamento pela cor da minha pele, da mesma forma apressada com que mediam a conduta daquela senhorinha de 86 anos.
Questionaram-me se eu acreditava em racismo reverso. Respondi que não, mas sugeri às minhas interlocutoras (era um grupo de feministas) que mudassem seus padrões de análise, pois nada nos assemelha mais ao opressor que a reprodução de sua metodologia.
O debate tinha tom inquisitório e acabou se degenerando ainda mais quando choveram as adjetivações. Eu deveria ser burra e escravagista. Para completar, a “madame” (eu!) estava no grupo errado. Como a velhinha do vídeo, meu julgamento era sumário e minha pena, o apedrejamento virtual.
Àquela altura, a única certeza cristalina era a de que de fato eu não estava entre os meus. Mas entre minhas convicções mais firmes está a de que não se deve perder o aprendizado, por mais prosaica se apresente a situação e ainda que a circunstância se revele desagradável e hostil.
Por isso resolvi refletir sobre aquela inadequação. Há um mês escrevi um artigo que confrontou ideologia adversária à de agora. Se hoje me chamam de direitista ignorante, trinta dias atrás eu me passava, vejam só, por esquerdista alienada. Lembrei-me, então, da gralha com penas de pavão, do grego Esopo. Eis a fábula: os pavões trocavam as penas. A gralha encontrou as belas plumas pelo chão e cobriu-se com elas. Suas semelhantes não gostaram daquilo e a tocaram dali. A ave, então, buscou a companhia dos pavões, mas terminou rejeitada também por eles, que a perceberam como intrusa.
Em tempos de pontos de vista extremados e certezas absolutas, sente-se como gralha em penas de pavão quem não adere a um pacote fechado de opiniões. `
Nunca foi tão difícil exercer a ponderação. O caminho alternativo à lealdade irrestrita a um sistema de ideias passa por uma corda bamba colocada sobre leões famintos e furiosos.
Da fábula sempre se extrai uma lição, a chamada moral da história. Nesse caso, a mensagem essencial é a de aceitar a própria natureza, não tentar parecer-se com algo diferente de si próprio, sob o risco de não ser acolhido em grupo algum. Mas se é a própria autenticidade que cria o isolamento, qual a saída?
Ao que tudo indica, é preciso ter paciência e esperar por dias mais amenos. Enquanto isso, convém procurar sua própria turma. Na era da pós-verdade e das fake news, os fatos parecem importar menos que as narrativas. Preciso acreditar, contudo, que não estou só na batalha contra a mentira, não importa quem dela seja o alvo. Quero crer que exista quem pratique a empatia, o não julgamento, o olhar demorado sobre as pessoas.
Deve haver quem defenda as liberdades, o Direito, a ética nas relações humanas, quem não tenha em mente um mundo dividido entre esquerda, centro e direita e não esteja ávido por rótulos e compartimentos.
Deve haver por aí, enfim, outras gralhas com penas de pavão.