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A história de Ling e Maurice

Ling e Maurice estavam em uma excursão conhecendo o Chichén Itzá, uma cidade arqueológica maia localizada no estado mexicano de Iucatã, quando se conheceram quase na virada deste milênio. Ling fala chinês, Maurice, francês e os dois só se comunicam até hoje “muito bem” em inglês, ainda que cada um com seu sotaque. Ling é escritora e amante da filosofia e das ditas ciências exatas. Maurice é um francês alucinado que curte Lacan e artes marciais. Enfim, enroscaram as línguas, lamberam-se intensamente, amaram-se e foram morar juntos em Nova Iorque, onde Maurice conseguiu um emprego.

Ainda que duas pessoas quaisquer nesse mundão de meu deus sejam dois universos, Ling e Maurice eram dois, digamos, sistemas que viviam coisas absurdamente diferentes até mesmo quando estavam juntos, como por exemplo, fazendo amor. Maurice, que conjugava no passado, no presente e no futuro, imaginava o tempo como uma reta horizontal começando na esquerda e terminando na direita assim como muitos de nós escrevemos. O relógio, de fato, marcava a passagem de algo para ele e, ao gozarem, o sexo para Maurice terminava em um instante definido. Ling com sua mente moldada pelo mandarim não pensava sobre o que está para trás ou por vir já que nesta língua não há o que chamamos de pretérito, de ontem e nem de amanhã. Enfim, as coisas para ela se, por exemplo, aconteciam no que chamamos de Domingo, começavam (se é que podemos dizer assim) desde  xīng qī sìxīng qī wǔxīng qī liùe continuavam na xīng qī xīng qī èrxīng qī sān que são os dias da semana que vêm antes e depois do que na língua inglesa chamam de dia de Sol. Expliquei-me mal porque o português me limita. O que quero dizer é que, para Ling, a dança entre eles persistia ainda que a música não fosse mais ouvida.

Escutar as histórias de Ling, mesmo que ela as conte em inglês, causa uma confusão dos diabos na cabeça de Maurice. Ling tem uma cronologia própria dos orientais que é um desafio para qualquer um que deseje se aventurar no campo da sinologia ou que queira simplesmente conversar com uma chinesa. Ling não consegue conjugar o verbo “to be” com a mesma naturalidade de Maurice que fala je suis isso, je suis aquilo. O mundo material para ela sempre foi entendido como um mundo que constantemente se transforma e qualquer manifestação da realidade para Ling é dada sempre em uma forma dinâmica. Assim, voltando para o entrelaçamento de pernas que acontece entre eles,  a essencialidade dessa troca de fluidos não se apresenta diretamente para ela, mas é apenas mediada pela forma com que emerge. Já para Maurice, o mundo é formado por várias coisas que são, em grande medida, objetos materiais. Oras, em chinês, “coisa” nem sequer tem tradução equivalente porque eles consideram tudo como “fenômenos”. Como conjugar o verbo “ser” dentro de uma realidade em completa mutação?, essa é uma pergunta que Ling se faz sempre que tem que dialogar com Maurice em inglês.

Amar, esse verbo intransitivo para Mário de Andrade e um intrometido para mim, era infinito para Maurice assim como o é para muitos de nós mortais e ocidentais. L’amour c’est éternel!, pensava ele em francês quando lembrava de Ling que, por sua vez, via tudo em processo de natural geração, maturação, decadência e extinção, sejam objetos, animais, planetas, estrelas, galáxias… ou o amor. Traduzindo o que cada um diz para o português quando se ouve deles um “I Love You” no acariciar de suas línguas, Ling profere: eu continuo em você e Maurice, eu me identifico com você… ou algo assim. Mencionei isso somente para conseguirmos vislumbrar o que vem a ser a comunicação entre Ling e Maurice e os demais seres humanos. Como nos entendemos – se de fato nos entendemos – é um milagre.

Maurice acredita que escolheu viver com Ling pois, para ele, há uma cadeia causal. Ling percebe que amar a companhia de Maurice é um processo que ocorre completamente independente de sua vontade. Se ela pudesse escolher, escolheria não amar para não sofrer.

Percebam como as realidades de ambos são ímpares. Os átomos do corpo de Maurice, para ele, pertencem a ele somente. A despeito da física moderna nos mostrar que quando duas partículas emaranhadas estão distantes umas das outras elas ainda se comportam como uma entidade única, levando ao que Einstein chamou de ‘ação fantasmagórica à distância’, a ciência é tida como um conjunto de “teorias” ou “hipóteses” para muitos. Portanto, essa informação não é suficiente para alterar a sensação da existência de seres únicos que era, por exemplo, ele -Maurice – e outro independente que ele chama carinhosamente de “minha Ling”.

Os átomos de Ling, vejam vocês, têm uma história completamente distinta. Originaram-se no interior de estrelas como subproduto de uma atividade que produz sua energia ao fusionar alguns elementos. Eles se espalharam pelo espaço quando esses astros explodiram no final da sua vida e concentraram-se ao redor do Sol quando ele se formou, passando a fazer parte do planeta Terra e, finalmente, chegaram a formar o corpo de Ling. Um dia, esses átomos voltarão a se espalhar pelo espaço, independentemente do fato de Ling ter sido cremada ou sepultada. Para Ling, então, há muita coisa acontecendo além do seu “eu”. Seus desejos aparecem sem que sejam convocados. Ling não sabe onde ela começa e muito menos onde termina, mas entende que seu ser agora engloba o de Maurice.

De qualquer forma, independente do filtro usado pelo olhar de Ling ou de Maurice e como eles interpretaram o que entre os dois aconteceu, o que eles viveram é algo que no português traduzimos como “felicidade”, aquilo que funciona como a borboleta: quando a perseguimos nos escapa, quando desistimos de persegui-la, pousa em nós. Nem ela nem ele foi para aquela excursão em Chichén Itzá buscando alguma coisa além de entretenimento e quando menos esperavam o inseto supracitado invadiu o estômago de ambos.

Quando Ling conheceu Maurice, estava como sempre interessada em viver o presente que em seu idioma pátrio engloba os outros tempos verbais  tanto o passado quanto o futuro. Nem sei se foi certo isso que disse, pois para muitos chineses não há antes, durante e depois. Enfim, seja o que for, Ling observou a beleza de Maurice assim como a inteligência do lindo rapaz não somente como uma oportunidade, aquilo que vem ao nosso encontro, mas também como um tipo de disponibilidade, a abertura que temos de ter para acolhê-lo.

Maurice, por ter se desenvolvido dentro de um outro mundo onde é imposto a separação e a oposição dos tempos verbais, tinha-lhe o presente inacessível, pois, este foi reduzido no plano físico a um ponto sem extensão, ou seja, a um instante. Portanto, Maurice estava condenado, no plano metafísico, a viver de lembranças e se projetando em um ilusório caminho que só existe em mentes que separam o subjetivo do objetivo como funcionam as dos ocidentais. Ora, e desde quando viver passou a ser da ordem da travessia entre dois extremos? O “viver em si” é pensável do exterior? Para Maurice, essas perguntas sequer eram inteligíveis. Mas ainda assim, ele queria viver com sua Ling o futuro, assim por ele entendido, que lhe restava.

E saibam que, até hoje, esse casal vive junto. Ling, sem acreditar em  livre-arbítrio. Maurice, constantemente querendo entender o que ele é afinal. Essa questão que tanto o movimenta, ele jamais conseguiu traduzir para sua Ling de uma forma que ela o compreendesse, pois,  pelo menos na escrita chinesa, não há equivalente para o verbo “être” ou “to be“. Se o que um fala o outro assimila como é pensado por quem discorreu não sabemos. Possivelmente, pelo pouco que consegui relatar aqui, não. Nem sequer um consegue se apoderar das muitas perguntas do outro…

Há quem acredite que o amor está na soma das compreensões. Clarice Lispector, na contramão, disse que somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Eu creio, depois de ter conhecido Ling e Maurice, que o entendimento entre quaisquer dois seres nesse planeta só acontece com a partilha de sentimentos como sofrimentos e alegrias. Afinal, sentir é pensar sem ideias, e por isso comungar sentimentos é, de alguma forma, um entendimento – visto que o Universo não tem ideias.

Ling e Maurice nasceram, como nós, com vários defeitos, mas não o de querer entender uma pessoa só com a inteligência. Ambos sabem que o que se pensa não pode ser assimilado pelo outro, seja pelo obstáculo da língua seja porque simplesmente a comunicação é mesmo um tipo de ilusão. E eles não estão nem aí para isso, pois, perceberam que compreender o que outra pessoa pensa é concordar ou discordar dela. Mas compreender o que um ser sente… ah aí é fazer com que dois universos sejam amalgamados pela eternidade – seja lá o que isso for.

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Agradeço a Júlio Camacho por ter me inspirado essa história.
Elika Takimoto

– Segunda colocada no 1º Prêmio Saraiva: Literatura, categoria: crônicas. – Doutora em Filosofia pela UERJ. – Mestre em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela UFRJ. – Graduada em Física pela UFRJ, professora de Física do CEFET/RJ. – Autora dos livros: 1- História da Física na Sala de Aula – publicado pela Editora Livraria da Física. 2- Minha Vida é um Blog Aberto – será lançado agora no segundo semestre pela Editora Saraiva. 3- Isaac no Mundo das Partículas – livro infantil sobre Física de partículas e filosofia da ciência para crianças. Ainda não publicado. 4- Como Enlouquecer seu Professor de Física – um livro sobre Filosofia da Ciência para jovens e adultos. Ainda não publicado. 5- Filhosofia – um livro de crônicas sobre seus três filhos, ainda não publicado. 6- Tenso, logo escrito – um livro de crônicas escritas motivadas pelo sofrimento. Ainda não publicado. 7- Penso, logo escrito. – um livro de crônicas onde há muitas reflexões. Não publicado. 8- Eu conto – Um livro de contos. Ainda não publicado. 9- O que há de Metafísica na Física? – A sua tese de doutorado que futuramente virará livro.

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