Com alguma atenção é possível cismar que o mais assustador sobre a morte seja a reação daqueles que ficam. Uma pessoa passa a vida inteira quase esquecida, rodeada por um círculo exíguo de amigos, um artista é pouco reconhecido, tem lá os seus bocados de fãs fiéis, ou ainda, uma pessoa é isolada, solitária e criticada na maior parte do seu tempo vivido. Poderia descrever aqui “N” situações de pessoas que, enquanto em vida, não receberam o mesmo suporte ou a mesma atenção que despertaram no momento da morte.
De que vale uma homenagem, a atenção ou o afeto para um morto afinal? Independentemente de existir alma ou qualquer outra coisa, creio que uma vez que o corpo vai, vai com ele todo o valor do que quer que fosse que fizesse sentido “por aqui”. Deixar ir… não é que homenagens não sejam belas, necessárias ao luto nosso, mas são necessárias ao luto nosso, é um consolo para quem fica e de nada vale para quem partiu, e mesmo que valha (vai da crença de cada um), por que não valorizar as pessoas enquanto elas estão entre nós?
A morte é quase sempre tratada como um grande espetáculo, com direito a performances acrobáticas da hipocrisia. É o momento em que todos se abraçam em memória do morto, de que todos os erros e defeitos do defunto são apagados. A absolvição, o reconhecimento e o amor, talvez tão desejados pelo falecido quando vivo, se convertem em rosas para adornar um caixão. Qual é o problema com as pessoas que decidem valorizar alguém justamente quando não há nada que possa ser feito por ele?
Dizem que a morte é a única coisa sobre a qual não há nada que possa ser feito. E talvez, justamente por isso seja tão fácil amar um morto. Não é necessário se responsabilizar pelo que sente por ele, não há cobranças, não haverá ações que coloquem em dúvida a sua devoção, não haverá decepções, não haverá discussões nem contratempos: a morte por si só dá conta de tudo, agora a culpa é toda da morte e por isso todos podem ficar em paz entre si. Rituais a parte, a morte nos convida a uma reflexão maior do que levar a “culpa” pelo que não foi ou automatizar um ato de beatificação do que se foi. Seja lá o que for: foi. Ela nos convida a uma reflexão sobre a vida, essa que é dura!
A morte nos pede coragem em assumir a vida – em assumir amor sem expectativas de que ele será recebido de uma forma passiva e idealizada, em assumir devoção mesmo diante dos defeitos, em assumir relações mesmo com contratempos, em estar presente ou de ausentar-se mesmo, sem culpa, tão sem culpa que não irá também buscar redenção através de votos lamuriosos embalados em um funeral. A morte nos pede coragem para viver sem saber o que será amanhã, e ainda assim, viver com gosto, apreciando cada momento e, como parte do “pacote”, as pessoas que escolhemos como elementos desse viver.
A vida importa. É enquanto ela corre que é possível fazer alguma coisa. Por que não homenagear pessoas vivas, enquanto elas podem usufruir de toda a afeição e reconhecimento? Por que não abraçar pessoas vivas, declarar os sentimentos, chorar à vista para rir a prazo, celebrar o ar que entra e sai dos pulmões? Por que não se responsabilizar pela sua atitude diante do que é em vez de lamentar o que jamais voltará a ser?
Não se trata de abandonar a memória e os afetos pelos que se foram, mas em ter nestas memórias a lembrança dos mesmos afetos doados em vida. Fazer na despedida a última homenagem e não a primeira, diante da derradeira partida.
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