A menina que mentia demais

Em seu livro clássico “Coerção e suas implicações”, Sidman fala sobre como a punição pode ser ineficiente para mudar comportamentos – primeiro porque punir não ensina como se comportar, mas apenas como não se comportar – e segundo que as pessoas podem manter o comportamento punido, mas agora de forma encoberta. É como um filho que é ameaçado pelo pai se tirar notas vermelhas e, ao receber o boletim, esconde-o para não ser pego. Ou o namorado que já foi pego traindo a namorada e quase a perdeu e agora exclui seus rastros digitais apagando conversas no Facebook e no Whatsapp para que não seja punido com a perda do relacionamento.

O comportamento de mentir, dentro desse contexto, pode ser extremamente importante para esconder comportamentos que possuem grande possibilidade de serem punidos. Vejamos um caso que ocorreu comigo:

Faz alguns anos que conheci uma menina. Ela gostava de inventar histórias absurdamente desnecessárias. Criava todo tipo de mentira para as coisas mais simples: se estivesse comendo um bolo de chocolate e alguém lhe perguntasse o sabor do bolo, diria baunilha.

Nem sempre, no entanto, suas mentiras eram inofensivas. Muitas vezes ela inventava histórias sobre as pessoas, criando confusões entre seus amigos. Chegou a dizer para o namorado de uma moça que sua namorada estava dando em cima dela e que elas tinham um caso. Contava também histórias de viagens para diversos países e fantasiava com praticamente qualquer assunto banal.

Aquela história me deixou intrigado, mas, ao mesmo tempo, me fez pensar que eu já conhecera várias pessoas que eram daquele jeito. Por que alguém mentiria tanto de forma aparentemente desnecessária? Fiquei imaginando que, segundo a Análise do Comportamento, um comportamento se mantém frequente se for reforçado, ou seja, o ambiente precisa oferecer algo agradável para que ela se mantenha mentindo tanto. Mas, o que seria? A mentira parecia sempre lhe trazer desvantagens: afastou-se da maioria dos amigos, era extremamente criticada por todos e muitas vezes chegava a ser xingada de mentirosa, falsa etc.

Se o presente não explicava muito bem aquele comportamento de mentir compulsivamente, então o passado explicaria. Fui atrás de sua história de vida.

Contaram-me que ela teve uma infância muito difícil, principalmente por conta da agressividade excessiva do pai. Este, um policial militar estressado, batia tanto nela quanto nos irmãos por qualquer motivo – parece que também era violento com a esposa, transformando o clima na casa em um inferno para todos.

Imaginemos o comportamento de mentir dentro de uma casa em que um homem muito violento convive. Mentir pode salvar a pele de muitas situações. Fiquei imaginando essa menina que mentia demais quebrando um vaso e o pai perguntando quem quebrou. Mentir a salvaria de uma surra. Diversas situações podem ter ocorrido para que inventar histórias absurdas lhe trouxesse a oportunidade de não apanhar.

Outra consideração importante para se lembrar é que nenhum comportamento se mantém sem uma função – se ele perde sua função, deixa de existir (é extinto).

A menina cresceu. O comportamento de mentir perdeu a função inicial de livrá-la das surras do pai e, ao mentir como adulta, era muito mais fácil de ser descoberta – seus amigos percebiam as incoerências em seus discursos, ela era mais facilmente “desmascarada”. A complexidade de sua vida social (diferente da simplicidade da vida de uma criança) também tornava o comportamento de mentir muito mais difícil e a punição mais provável. Portanto, o comportamento dela de mentir diminuiu progressivamente.

Mentir, entretanto, ainda poderia ter suas utilidades. Um mesmo comportamento pode mudar de função e manter-se na mesma pessoa. Essa garota, então, encontrou uma forma de mentir que lhe seria útil, aceita e reforçada social e economicamente: ela se tornou uma grande atriz.

SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Editora Livro Pleno, 2009.
Fonte indicada: Comportese

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