Por Tatiana Nicz
“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?“
Friedrich Nietzsche
Quando meu pai me contou que havia sido diagnosticado com câncer, a primeira coisa que passou pela minha cabeça foi: “fodeu!”(perdoem a palavra, não encontrei sinônimos à sua altura). Em seguida fui tomada por um sentimento, que até então não conhecia, uma tolice extrema que me trouxe muita frustração. Como nunca havia pensado que meu pai morreria um dia?
Não me considero uma pessoa super inteligente, mas achava que já conhecia todas as minhas burrices, geralmente as confrontava nos cálculos complexos das aulas de Matemática ou de Física. Eu nunca fui boa em calcular nada. Mas essas eram burrices que eu já sabia identificar e estava acostumava a lidar, essa frustração já me era familiar. Mas, se sou “burra” para matemática, emocionalmente me sentia mais inteligente, por isso, quando soube do diagnóstico do meu pai fui acometida por um sentimento de burrice emocional que não me era familiar e confesso que foi muito difícil lidar com toda essa frustração.
A doença do meu pai me trouxe uma sensação de analfabetismo emocional profundo, me senti tola, entrei em contato com a imensa desconexão que existia em mim de processos tão naturais e importantes da vida, como a morte. Sim, já havia perdido avós e tios, a morte todos nós sabemos o que é, mas atualmente ela foi tão banalizada que provocou desconexão. Então, mesmo conhecendo a morte, considero que andava pela vida totalmente desatenta do fato de que a vida é de fato finita, de que somos tão insignificantes diante da morte, percebi que entendia muito pouco sobre perspectiva.
Claro que em se tratando do meu pai, algumas coisas contribuíram para tamanha desconexão, ele era um cara que falava de bem estar o tempo todo e fazia tudo conforme o protocolo. Meu pai era um “bon vivant” no melhor sentido da palavra e levava sua saúde e bem estar à sério. O diagnóstico dele contrariou todas as recomendações médicas para longevidade. Antes disso eu nunca tinha visto meu pai ficar doente ou tomar algum tipo de remédio.
Depois do dia em que ele mencionou a palavra “câncer”, passei dias à fio dormindo e acordando com esse sentimento tão frustrante que resolvi chamar pelo nome: burrice. Uma ingenuidade muito diferente da inocência bonita que possuem as crianças, uma tolice aguda. Com o tempo fui absorvendo e aprendendo a lidar com essa frustração, comecei a buscar as raízes dessa desconexão e foi então que descobri que não estava sozinha.
O fato de saber que não estava sozinha em meu analfabetismo não me trouxe algum tipo de consolo, muito pelo contrário, contribuiu para que eu me sentisse ainda pior. Eu já sabia que a burrice isolada (no caso em mim) seria muito mais fácil de tratar, o maior problema da humanidade está nas burrices generalizadas.
Enquanto passei a ficar mais atenta entendi que a situação era mais grave do que eu pensava. De alguma maneira a medicina, a ciência e as próprias religiões se encarregaram de nos afastar de processos tão essenciais como a morte e isso é muito perigoso. Eu já havia entrado em contato com isso olhando para o nascimento, na maneira fria como os partos atualmente são conduzidos, mas curiosamente nunca tinha pensado o mesmo sobre a morte.
Foi no Zen Budismo que encontrei algum tipo de consolo para essa minha “solidão”, o tempo da prática de Zazen se inicia e encerra com uma batida seca na madeira e uma voz dura que nos alerta: “O assunto mais importante da vida é a morte”. As práticas de Zazen (40 minutos de meditação sentada) me trouxeram mais serenidade e sabedoria para enfrentar a morte.
Hoje tenho feridas e mágoas muito profundas sobre maneira como o tratamento do meu pai foi conduzido, para com a forma como a medicina se aproximou das máquinas e se afastou do ser humano. A morte é o assunto mais importante da vida e, no entanto, nos falta bom senso e coragem para falar sobre ela.
Conforme o tempo passava e a doença ganhava força, eu ficava mais incrédula com a maneira como a possibilidade tão real da morte (não) era abordada. De todos os médicos que trataram meu pai apenas um soube abordar o tema com humanismo, ele conduziu a última cirurgia e conversou com a família sobre morte. Fora ele, nenhum médico soube falar de morte, ninguém falou de maneira clara com o paciente ou com a família sobre nada, principalmente, ninguém soube preparar o paciente para essa (tão real) possibilidade e conduzir de maneira humana essa batalha da morte contra a vida. Se para o paciente, amigos e familiares o processo de negação era bem compreensível, para os profissionais da saúde acredito que não.
Eu testemunhei incrédula e impotente verdadeiras “atrocidades” durante o processo todo em que estive em contato direto com os profissionais da saúde. Se os médicos e enfermeiros não sabem falar de morte, quem saberia? Me dei conta de que existe uma profunda desconexão nesse tema, muita hipocrisia e um grande descaso para a maneira como a vida humana é tratada. E essa ferida, tenho certeza, vai levar muito tempo para cicatrizar.
Um olhar mais atento e descobri que os médicos não estão sozinhos, acho que os religiosos lideram o topo da pirâmide. Talvez seja por isso que tenhamos nos desconectado ao longo dos séculos. As religiões ocidentais, muito diferentemente das orientais, separaram a morte da vida, nos levando à um apego excessivo para com a vida. A morte é um tabu. As pessoas nas Igrejas rezam pela cura, todo mundo fala em milagre e cura, ninguém menciona a morte.
O que sei hoje é que “Deus está com você” não consola ninguém na hora da morte e “Deus vai te curar!” menos ainda. Por favor não me peçam para colocar minha vida nas mãos de ninguém, nem de Deus. Quase dois meses de hospital e os padres e madres visitavam todos os dias, todos prometiam a cura através da vontade de Deus, ninguém falou em morte. E eu ficava cada vez mais incrédula da humanidade diante de tudo que estava vivendo. “A morte é o assunto mais importante da vida!”. E não existe verdade ao falar sobre ela.
Eu sei, é certo, ninguém quer morrer, nosso DNA é programado para lutar pela vida, nenhum ser vivo deseja morrer. Não é natural aceitar a morte de maneira passiva. Ninguém deseja morrer. Nem uma célula de câncer deseja morrer. Nem quem acredita no paraíso quer morrer para chegar nele. E qualquer pessoa, independente de credo ou religião, sofre ao perder alguém que ama. Isso é certo. Mas, mais certo que isso, é o fato de que ninguém sobrevive à morte. A morte é sagrada. O assunto da morte precisa ser abordado, com cuidado e respeito.
Certo dia, enquanto me escondia para que meu pai não me visse chorando, sentada no sofá, fazendo aquele constante exercício de absorver e respirar, respirar e absorver (para não desmoronar). O médico dele que passava por ali se aproximou e, entre algumas palavras de conforto, me aconselhou: “Devido ao histórico de doenças raras de seu pai e sua mãe, acho que você e seus irmãos deveriam fazer um aconselhamento genético”. Boa coisa que eu já estava sentada.
Pausa.
Por um breve momento lembrei-me daquele sentimento de burrice que me acometeu, o fator genético hereditário tampouco era algo que me havia ocorrido. Levei tempo para processar essa informação.
Nesse caso, penso, talvez a minha ignorância seja mesmo uma dádiva. Não basta tudo que vivi com minha mãe e meu pai, era a minha vez. Hoje tenho em minhas mãos uma escolha de enfrentar o conhecimento e quem sabe conformar-me com um diagnóstico que pode colocar fim à vida da maneira como hoje conheço. Tenho a escolha de reviver o pesadelo de tudo que a medicina, a tecnologia, a ciência e a religião não fizeram pelos meus pais.
Ou não.
Ou posso escolher viver na ignorância. Porque, independente de qualquer diagnóstico, a morte chega para todos. Ninguém deveria desejar viver eternamente. A finitude da vida é de fato a sua maior invenção.
Então optei pela burrice. Decidi transformá-la em uma burrice sábia, em minha aliada, na certeza de que, independente de meus genes bons e ruins, eu viverei cada dia como se fosse o último.
Hoje nada que faço é sem propósito: eu aprendi a amar com propósito, trabalhar, contar histórias, viajar, escrever, comprar, me alimentar e até beber com propósito, tudo que faço hoje é em profundo estado de gratidão e celebração, com sentido.
É preciso celebrar a vida todos os dias. E sei que quando eu me deparar com a morte novamente, ela me despertará milhares de novos sentimentos que novamente me convidarão à viver esse sentimento tão estranho que é a frustração. Mas fiz com a morte um acordo, independente de quanto tempo leve para a gente se cruzar novamente, em profundo respeito que tenho por ela, ela não me pegará mais desavisada. Eu não me esquecerei dela, hoje ela já me é familiar, hoje vivo cada dia como se fosse o último, pois um dia ele certamente será.
A tradução do vídeo:
“Não existe nada radicalmente errado em adoecer ou morrer. Quem te disse que iríamos sobreviver? Quem te deu a impressão que iríamos continuar eternamente vivos? E não podemos dizer que seria bom se seguíssemos vivendo pela simples demonstração de que se seguíssemos vivos nós nos “superpopularíamos”. Portanto, quando alguém morre é de fato honrável, pois ele está abrindo espaço para os outros. Se pudéssemos indefinidamente adiar nossa morte, nós não iríamos prolongá-la indefinidamente porque em algum momento nos daríamos conta de que não seria essa a maneira como gostaríamos de sobreviver. Para que mais teríamos filhos? As crianças nos dão a chance de sobreviver de maneira distinta, como se estivéssemos passando a tocha, para que não precisemos carregá-la eternamente. Há certo momento em que precisamos parar e dizer: “agora é a sua vez de trabalhar”. É o arranjo mais impressionante da natureza, nos permitir perpetuar nossas vidas através de outros seres e não somente através de nós mesmos. Porque a vida em si é renovada e através desse novo indivíduo e através da maneira como cada novo ser descobre a vida, nos recordamos de como é fascinante olhar as coisas simples da vida através do olhar de uma criança. Porque elas enxergam tudo de uma maneira que não está relacionada à sobrevivência e ganho. Quando atingimos um ponto em nossas vidas onde passamos a olhar para tudo como modo de sobrevivência ou ganho, então as formas e os arranhados do caminho deixam de conter magia em si. Então, quando isso se esgota e não conseguimos mais ver magia no mundo, nós não estamos mais preenchendo os propósitos do jogo da natureza e, portanto, ela segue seu curso. Dessa forma, morremos para abrir espaço para o novo; que traz em si uma maneira única e renovada de enxergar o mundo, para que a natureza seja sempre um jogo no qual manter a chama acesa sempre valerá a pena.” Alan Watts
Imagem de capa: patronestaff/shutterstock