É preciso um pouco de arrogância para mexer com um dos eventos televisivos que definiram o século XX. A Xógun original, uma minissérie em cinco episódios baseada no best-seller de James Clavell, foi um grande sucesso quando foi ao ar na ABC em 1980.
Quase um terço dos lares americanos sintonizaram para assistir a um elenco estelar liderado por Richard Chamberlain e o icônico ator japonês Toshiro Mifune em uma trama que reconta a história das aventuras de um navegador inglês no Japão feudal. Xógun quebrou barreiras na TV e acumulou prêmios. Poderia haver algum motivo, além da sede da indústria do entretenimento por trazer de volta prudutos já testados anteriormente, para revisitar essa história em 2024?
A resposta é sim. A nova versão de Xógun, que estreou no Brasil em 27 de fevereiro com o título “Xógun: A Gloriosa Saga do Japão”, não é propriamente um remake, mas sim uma reimaginação radical da história. Adaptado diretamente do romance de Clavell, este extenso drama histórico em 10 episódios tem uma visão muito mais ampla do que sua antecessora, indo além da perspectiva do estrangeiro ocidental para examinar uma sociedade fraturada que está tão perplexa com os modos deste intruso quanto ele com os deles. É um épico de guerra, amor, fé, honra, conflito cultural e intriga política. E em um momento em que muitas das maiores produções da TV oscilam entre altos e baixos, Xógun da FX se destaca como uma verdadeira obra-prima.
ENREDO
A trama de Xógun, DISPONÍVEL NO STAR, tem início no ano de 1600, quando um navio europeu em ruínas emerge da neblina da madrugada na costa de uma vila de pescadores japonesa. Liderando sua tripulação desgrenhada e desnutrida está John Blackthorne (Cosmo Jarvis, de Persuasão), um piloto inglês com um instinto de sobrevivência irreprimível. Infelizmente para ele, os líderes locais não estão exatamente satisfeitos em receber a sua delegação imunda. Ainda mais hostis à tripulação de protestantes que desembaraca no Japão são os católicos portugueses que já haviam estabelecido comércio e igrejas no país.
Blackthorne logo se depara com uma crise muito maior que a sua. Um ano após a morte de Taikō – título que signigica regente aposentado -, um Conselho de Regentes foi estabelecido para governar o Japão até que o filho do falecido líder tenha idade suficiente para ocupar seu lugar. Um desses regentes é Lord Yoshii Toranaga (interporetado Hiroyuki Sanada), um velho herói de guerra baseado em Edo. Este desentendeu-se com os outros quatro regentes, que se viram intimidados pelo seu crescente poder e independência. Convocado a Osaka, Toranaga é ameaçado de impeachment. A sua reação poderá mergulhar a nação numa guerra civil.
Estrategista brilhante, Toranaga sabe o quão útil um navio contendo 500 mosquetes e 20 canhões – bem como um “bárbaro” que sabe como usá-los – poderia ser para ele em uma terra onde as guerras são geralmente travadas por samurais empunhando espadas. Assim, Blackthorne, rebatizado de Anjin (a palavra japonesa para piloto ), é transportado para Osaka, onde seu destino e o do regente em apuros se entrelaçam. Toranaga convoca Toda Mariko (Anna Sawai), uma nobre que se converteu ao cristianismo, como tradutora do Anjin. A primeira vez que vemos essa personagem astuta, firme, estóica, mas com o coração partido, ela está calmamente persuadindo uma jovem mãe a entregar seu bebê para ser massacrado como parte do seppuku – um ritual em que um samurai tira a própria vida – de seu marido em desgraça.
Blackthorne pode ser o personagem que os espectadores encontrarão primeiro, assim como foi na Xógun original. No entanto, nesta narrativa dos co-criadores Justin Marks (Top Gun: Maverick) e Rachel Kondo, os personagens de Toranaga e Mariko são tão protagonistas quanto o homem que eles chamam de Anjin. Os três têm algo em comum: cada um é um leitor experiente de situações sociais, envolvido numa luta pela sobrevivência. Blackthorne deve navegar por uma cultura desconhecida, com costumes complexos, se quiser ver sua tripulação, seu navio ou sua terra natal novamente. Toranaga, que insiste que não tem ambições de se tornar shogun, será morto e seu clã dizimado no campo de batalha se ele não abordar seu conflito com o Conselho corretamente. Mariko, esposa de um guerreiro brutal (Shinnosuke Abe) e filha de uma família desonrada, sente-se chamada a cometer o seppuku, mas obriga-se a continuar a viver em deferência às suas crenças católicas e por lealdade a Toranaga.
Crucial para esta ampliação do escopo é a decisão dos criadores da série de não apenas fazer com que os personagens japoneses – que compõem a grande maioria do elenco – falem sua própria língua, mas também de traduzir suas palavras para o público ocidental usando legendas. Toshiro Mifune também falava japonês na versão de 1980, mas, como Blackthorne, o público que não conhecia esse idioma só conseguia entender o que ele dizia nas cenas em que o Anjin se comunicava por meio de um tradutor. Essa presunção manteve os espectadores fundamentados, mas também confinados, ao ponto de vista confuso do piloto, mantendo à distância os personagens japoneses e a sociedade em que habitavam.
Em 2024, quando o público da TV é internacional e as séries multilíngues são cada vez mais comuns, as legendas por si só são suficientes para justificar o remake. Toranaga, Mariko e seus compatriotas não são mais excluídos por padrão; nós os ouvimos maravilhar-se abertamente com os modos estranhos do Anjin, seu apetite por ensopado de coelho e sua aversão a banhos. Em termos de narrativa, a capacidade dos espectadores de entender o que os personagens japoneses estão dizendo uns aos outros abre imensamente o mundo de Xógun. Temos conversas privadas, histórias de fundo, acesso à vida interior de agentes duplos, cortesãs ambiciosas e guerreiros ávidos para provar seu valor através do combate. A perspectiva expandida torna a série uma saga verdadeira e envolvente, complementando performances que se movem fluidamente entre a sutileza e a grandeza, encenadas em meio a visuais suntuosos que contrastam vistas costeiras dramáticas e interiores minimalistas iluminados por fogueiras com a violência da guerra e do seppuku.
Em resumo, a minissérie “Xógun: A Gloriosa Saga do Japão”, disponível no Brasil nos streamings Disney+ e Star+ , prova que é possível contar uma história épica e grandiosa na televisão com a mesma qualidade que seria vista em uma produção de cinema.
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