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A parte que nos cabe desse latifúndio – ou dessa pampa pobre

Não, antes de qualquer coisa, eu não estou isentando os responsáveis pelas tragédias atuais (nem por qualquer outra) de responderem pelo que fizeram. Não estou pregando a impunidade. Mas proponho uma reflexão sobre a nossa obsessão pela punição, como se fosse a única solução ou a única preocupação relevante diante das catástrofes que homem causa no mundo.

Nem “olho por olho e dente por dente”, nem a sonhada justiça poderão recuperar o que foi perdido devido a uma má ação. Podemos encontrar os culpados pela morte de nossas águas e puni-los. Eles poderão pagar milhões, poderão morrer, e até mesmo que pudéssemos linchá-los, tudo isso serviria apenas para direcionarmos a nossa raiva, a nossa angústia em ver destruído um bem doado pela natureza por interesses particulares e mesquinhos.

Poderia também servir para causar temor ao responsável e aos outros, de modo a impedir que algo assim se repita – e é mais ou menos nesse sentido que a nossa “justiça” se sustenta. Será? Honestamente não me permito mais crer num tal idealismo. A triste verdade é que a punição estimula naqueles realmente mal-intencionados, que enxergam apenas a própria ambição, estratégias mais mirabolantes para passarem incólumes pelos desvios que cometeram ou que pretendem cometer.

Nenhuma punição purificará as nossas águas, nem ressuscitará os inocentes mortos na Síria ou as vítimas dos ataques terroristas na França. Não apagará as mazelas deixadas pelos regimes totalitários em nenhum país, estas que até hoje assombram como fantasmas as gerações que nasceram dessas aflições. Nenhuma desculpa anula as feridas de violência, seja ela física ou verbal, nenhum dinheiro paga pelas perdas subjetivas, nenhuma gratificação preenche o vazio infeccionado da negligência. Que justiça é essa que só trabalha nas urgências, tentando tapar com ideais os estragos concretos?

Me parece que um dos maiores problemas dos nossos tempos é tentar responder sempre com uma ideia de justiça, com revolta, com punição, a situações que por si só estão perdidas. Com isso não afirmo que estas medidas não devam existir, afinal, digamos que o mal feito precisa ser de alguma forma recompensado, porque é o que nos resta. Mas não é bem por aí que as coisas funcionam.

Também não há essa história de carma. Uma coisa absurda! Não consigo pensar em carma, que um bem ou um mal feito é recompensado pelo universo, quando vejo tantos inocentes em situação de calamidade e tantas pessoas vis desfrutando de mais, muito mais do que precisam. Que esperança nos resta num mundo sem carma, sem justiça, sem retorno, sem solução?

Com ou sem carma, com ou sem justiça, o que nos resta, se quisermos acordar e deixar de ver e mesmo sentir na pele tantas atrocidades acontecendo diariamente, é tomarmos em nossas mãos a responsabilidade de transformar o mundo num lugar melhor. Não é algo fácil, não é algo simples e não devemos esperar gratificações por isso, mas, pense bem: se cada pessoa capaz de se indignar com os dramas do mundo mudasse a forma de lidar com as coisas em seu cotidiano, qual efeito isso teria?

Não, não é mesmo justo que tenhamos que nos ver como responsáveis pelo mundo, pois já é bem difícil ser responsável pela própria vida. Mas dentro de um raciocínio lógico, a justiça, de fato não existe. Talvez seja apenas a partir dessa consciência que poderemos deixar de lado aquilo que nos abala e seguir o nosso curso em vez de descontar a nossa raiva nas pessoas que tem o azar de compartilhar conosco o convívio num dia ruim. Talvez seja apenas assim que paremos de pensar que se os políticos estão roubando, desviando dinheiro, etecetera e tal, então, porque não podemos deixar um troco passar a mais em vez de devolver a diferença para o caixa? E assim, poderíamos também procurar ajudar as vítimas diante de uma situação de calamidade em vez de postar denúncias inúteis aos causadores da mesma – infelizmente, a nossa revolta online, se não é organizada, se não é racionalmente direcionada, se perde em si mesma.

Em vez de colocar bandeiras nos perfis, poderíamos deixar de consumir coisas de empresas irresponsáveis, que tantas vezes, pelo status da marca temos orgulho em exibir. Dar mais valor ao que é sustentável, ao que é produzido por pequenos produtores em vez daquilo que é produzido por grandes indústrias, que tal? Comprar do feirante da esquina em vez de verduras embaladas ou enlatadas. Andar de ônibus sempre que possível e se reunir à luta por um transporte público mais digno. Colocar os filhos em escola pública e exigir melhor educação. Rever as próprias ideias, antes de entrar numa discussão séria por simples disputa. Ouvir o outro em vez de responder com dez pedras na mão antes que ele finalize a frase. Rever nossos preconceitos. Não gastar mais do que precisamos. Compartilhar o que temos quando nos sobra. Isso e muito mais, quem quer?

É muito fácil ser politicamente correto no discurso. Mas no discurso, todos estes que hoje temos como vilões também podem logo converterem-se em vítimas. Se a vida alheia nos interessasse mais para intervirmos nos abusos que identificamos do que para sabermos quem traiu quem, quem é “piriguete” e quem é charlatão, até mesmo isso teria um efeito fenomenal! Quando tudo o que nos resta fazer são atitudes simples, parece sem valor. Afinal o que isso tem a ver com os incidentes que estão ocorrendo no mundo? Essa descrença no valor das próprias ações, da própria mudança de vida, vem da ideia de que somos seres individuais. Os responsáveis por esses incidentes também pensam em si mesmos como pessoas individuais, não pensam nas consequências que suas ações têm para milhões de pessoas, ou simplesmente não se importam com isso.

Quando agimos como pessoas que não se importam com as consequências que suas ações exercem sobre os outros e sobre o ambiente onde vivem estamos sendo exatamente como esses grandes vilões, mas sem o mesmo poder que eles têm nas mãos, poder esse que muitas vezes somos nós que concedemos. Alimentando um mundo que funciona com essa lógica individualista e irresponsável acabamos por contribuir para que as coisas continuem assim, não importa quantas postagens indignadas compartilhemos na internet.

Enquanto apenas nos lamentamos e esperamos por justiça, enquanto desejamos punição com frases de efeito, enquanto acreditamos que vamos salvar o mundo com “energia positiva”, mas não somos capazes de ser gentis nem na nossa forma de andar em uma rua lotada no centro de uma cidade, o mundo mergulha em lama, em bombas, em discórdia, em balas, em crises econômicas, e pode ser que amanhã seja um de nós, que hoje está tranquilo em mesclar todas as suas frustrações pessoais a uma suposta preocupação com o mundo, sem fazer nada sobre um ou sobre outro, que será atropelado por uma nova tragédia.

Embora já não acredite em justiça, e possivelmente por isso, eu sonho que essa consciência possa fazer com que voltemos a ser “caudilhos” dessa pampa pobre, em vez de sermos soldados em marcha pela sua destruição…

Imagem de capa:  Herone Fernandes – Últimos Refúgios

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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Paula Peregrina

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