A pior maldade com o mundo é se habituar a um mundo maldoso.

Meu filho João é dessas crianças que pegam no sono em sua própria cama e depois, lá pelas tantas da noite, caminham no escuro apalpando a parede até o quarto ao lado para se apossar de um canto na cama dos pais. Noite dessas foi assim. Era já madrugada, eu seguia desperto entre tanto pensamento, e meu menino invadiu meu quarto para prosseguir seu sono ao meu lado. Junto com ele veio o Bob, nosso cachorro. Deitou-se aos pezinhos do dono, vigilante como um pequeno leão doméstico, e logo dormiu também.

Ficaram os dois ali, comigo, adormecidos. O silêncio na casa e no mundo era tão alto que eu não podia mais dormir. Vencido, desisti de me juntar a eles no outro lado da noite, em alguma praça de calçadas riscadas com giz, onde outras crianças brincam à tardinha, rodeadas de árvores e bancos de pedra com os nomes de velhos comerciantes, sob o olhar curioso de seus cachorros. Fiquei de cá, assistindo ao sono deles. E aquilo me fez bem.

João e Bob sonhavam juntos, decerto com um mundo diferente do nosso, onde a maldade não passa de um conjunto de lendas que os mais velhos contam às crianças para fazê-las comer tudo no almoço, concluir o dever de casa, escovar os dentes, dormir cedo e essas coisas que os pequenos insistem em deixar de fazer. “Olha, se você não comer esse bife o ‘homem do saco’ vai vir pegar você de noite, hein!”.

No mundo que criança sonha não há de haver absurdos como guerra entre torcidas, facções, países, roubalheira de dinheiro público, políticos remunerados, violência doméstica, concentração de renda, gente pedindo esmola, crime organizado, criança sem escola, briga no trânsito. Não deve haver sequer o trânsito! Os carros vêm e vão sem pressa, sob o comando de pessoas felizes por ter para onde ir e para onde voltar. Não há separações litigiosas. Imagine! Os casais que decidem se separar simplesmente se despedem e levam suas vidas adiante, cada um seu caminho. Porque em sonho de criança pessoa nenhuma pode ser propriedade de outra. A gente é livre e nosso primeiro ofício é fazer por ser feliz sem prender, prejudicar ou maldizer ninguém.

A tristeza, ahh… a tristeza é só um negócio chato que dá de quando em vez na gente quando acaba o leite condensado, o desenho animado, o feriado, quando dá a hora de fechar o parquinho, quando a gente perde um brinquedo e recorre a São Longuinho, quando o time da gente perde ou um amigo se muda com os pais para outro país. Tem tristeza de tanto tamanho, mas é sempre só tristeza e tristeza passa. É prenúncio de alegria. Em mundo que criança sonha é assim.

Um lugar em que líderes religiosos não gritam discursos de separação, inimizade, competição. Um canto possível em que ninguém jamais esbraveja “a minha religião é melhor que a sua”. Tampouco o outro retruca “não, a minha é mais honesta”, nem um terceiro anuncia “só a minha é que está certa”. E onde ninguém jamais atropela, descarado e vil, o preceito básico da semelhança entre nós. Daqui de fora, dá pra ver e ouvir que nos sonhos do João e do Bob nós ainda não deixamos de ser “o semelhante” para nos tornarmos meros inimigos medíocres, previsíveis adversários.

Impossível dormir com um barulho desses. Não se pode adormecer sob o ruído doce dos sonhos de um menino e seu cão. Então deliro acordado que tal e qual nos sonhos deles, a paz e o amor não aceitam “não” como resposta. Acontecem arbitrários, à revelia dos canalhas. Logo ali, para dentro daqueles olhinhos, grupos fortemente AMADOS invadem locais públicos, restaurantes, casas noturnas, estações do metrô e estádios de futebol disparando carinhos. Por todos os lados, beijos atirados a esmo alvejam bochechas e testas, lábios estalam em infinitas bitocas, bocas se encontram em pura e simples manifestação de afeto, compreensão e apaziguamento.

Cá do lado de fora dos sonhos bem podia ser assim também. E é difícil não imaginar que só não é porque nos habituamos a um mundo maldoso, povoado de cretinos se reproduzindo feito coelhos. Porque nos acostumamos, desistimos, largamos a mão. Enquanto isso, tem de tudo nessa terra “de verdade”. Gente que mata, que fere, tortura, maltrata, rouba, chantageia, manipula, sequestra, estupra, engana, persegue, obriga, espanca, mente, faz e arrebenta e empreende uma fábrica de maldades funcionando em todos os turnos. E nós, tão acostumados, desistimos do sonho e vamos achando tudo isso “normal”. Assim, sem mais, deixamos de nos indignar quando é preciso.

E, você sabe, perder a nossa capacidade de indignação é mais ou menos como ter extirpada uma glândula e por isso ter de tomar remédio todos os dias para sobreviver. Em nosso caso, o remédio vem em doses cavalares, bobagens autopiedosas, pílulas de autoengano e toda sorte de pseudobondades nos fazendo acreditar que a culpa não é nossa.

Sem sonho, nos acostumamos a todo mal verdadeiro e toda gente vil. E quem se habitua a um mundo maldoso perde o viço e a capacidade de conspirar para que ele melhore. Porque aqui, dentro da gente, resiste ainda um sonho de que o mundo só melhora se cada um de nós mudarmos a nossa casa, nossos hábitos, gestos, atitudes, palavras, ações. Mas esse sonho caiu de sono e tédio. Adormeceu.

Resta a nós acordá-lo. É preciso dormir para acordar o sonho e levantar de manhã a seu lado. Trazê-lo são e salvo à realidade do nosso dia depois do outro.

Só assim, quem sabe, seremos tomados de um sentimento antigo, uma ternura cuidadosa, um desejo de ajudar. Como quem descobre atrasado que um amigo enviuvou, superou um câncer, perdeu os pais, mudou de país e, de repente, estremece de uma vontade irresistível de fazer desde já todo o bem que não fez até agora. Como quem chega a uma cidade arrasada, depois que a lama, o descaso e a ganância destruíram tudo, arregaça as mangas e diz “vamos juntos começar tudo de novo!”. Fácil não há de ser. Mas possível sempre será.

Porque é tudo uma questão de sonhar e fazer. Como no inevitável movimento dos relógios. Como no silêncio barulhento das crianças que dormem. Como nos sonhos de um menino e seu cachorro vigilante. Vamos. Vamos que ainda dá.

Imagem de capa: Lapina/shutterstock







Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.