Por Bartira Macedo de Miranda Santos
O poder punitivo, como todo poder, pode ser analisado como uma relação de força, um mecanismo de repressão. O poder é aquilo que reprime os indivíduos, ou as classes, fazendo-os se comportarem de determinada forma, e não de outra, e será eficiente na medida em que não precise utilizar a força. Na modernidade, o poder não se exerce pela força da espada, mas pela força da manipulação ideológica, que não constrange, mas convence o indivíduo a, voluntariamente, incorporar determinado sistema de crenças e agir de acordo com elas[1].
As mulheres sempre foram alvo do poder punitivo. Na Idade Média, eram queimadas acusadas de bruxaria. Nas Ordenações, o marido tinha o direito de matar a mulher surpreendida em adultério. Mesmo após a República, as mulheres foram subjugadas pelo poder punitivo (público e privado).
O poder, como uma relação de força, apresenta-se, na sua forma mais extrema, como o poder de matar. E é fato que muitas mulheres ainda hoje estão submetidas ao poder masculino, pois, caso não se comportem da forma esperada, estão sujeitas a receber esta punição: a morte.
A pergunta a ser feita é: o que o Estado tem feito para conter a violência contra a mulher? A esta pergunta nos dedicaremos em outra oportunidade. Por ora, chamamos a atenção para a questão da repressão ao feminino por meio do sistema punitivo. Vamos demonstrar as representações da “mulher” no sistema punitivo por meio da música.
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Há duas representações de “mulher” no direito penal e no sistema punitivo como um todo. Uma delas diz respeito à mulher autônoma, senhora de seu destino, indomável, independente, principalmente quanto à sua sexualidade e à disposição do próprio corpo. É, por exemplo, o “eu lírico” da canção “Folhetim”[2]:
Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim
E, se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim
E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia luz
E te farei, vaidoso, supor
Que é o maior e que me possuis
Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim
A mulher aqui retratada é um ser que pressupõe estar numa relação de iguais (“Se acaso me quiseres”) e estabelece as regras (“se quiseres, fique sabendo que só digo sim por uma coisa à toa”). Ela aceita mimos, gentilezas, “um sonho de valsa”, mas não está interessada em um provedor, em dinheiro ou casamento. Ela avisa ao interlocutor que lhe dirá meias verdades e o fará vaidoso (é ela que o faz pensar que é o maior). É uma mulher que assume querer uma relação apenas sexual, de momento, sem nenhuma outra pretensão ou expectativa.
A outra figura retratada no imaginário punitivo é a mulher honesta, casta, pura, virgem. É a mulher dependente, submissa, subalterna. É a mulher que age exatamente da forma que lhe é esperada, pois introjetou os saberes e as ideologias que moldam seu modo de ser e de pensar. É a famosa Amélia: “Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia que era mulher de verdade”[3]. Na canção de Vinícius, essa mulher possui “uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher / Feita apenas para amar / Para sofrer pelo seu amor / E para ser só perdão”[4].
Essas são duas figuras imaginárias, nenhuma mulher é integralmente uma ou outra, mas são modelos que ajudam a pensar a questão feminina em sua relação com o poder punitivo. A primeira mulher, autônoma e independente, é tratada no Direito Penal como a vítima provocadora, que desafia o sistema e que, quando assassinada, dará ensejo a teses defensivas como “a legítima defesa da honra”, que a colocam como verdadeira causadora do crime. Veja, por exemplo, o julgamento de Doca Street, que matou Angela Diniz. A vítima foi retratada como a “Pantera de Minas” e desqualificada como uma mulher de vida desregrada. Defendido por Evandro Lins e Silva, Doca foi absolvido e o caso virou o livro A defesa tem a palavra[5]. Posteriormente, o júri foi anulado e, submetido a novo julgamento, o réu foi condenado.
Já a segunda figura feminina, a mulher honesta, é a vítima propriamente dita, tratada como um ser frágil, débil, que precisa de proteção. É a mulher que o Código Penal de 1940 colocou como sujeito passivo do crime de “posse sexual mediante fraude”, previsto no então art. 215[6], ou o crime de “atentado ao pudor mediante fraude”[7] (art. 216). Nelson Hungria dizia que mulher honesta é “não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com ominimum de decência exigida pelos bons costumes”[8]. Somente em 15 de agosto de 2009, com a Lei 12.015/2009, a expressão “mulher honesta” foi abolida do Código Penal. Esta mulher, frágil e débil, é a mesma que a Lei Maria da Penha não permite que se retrate livremente do direito de representação contra seu suposto agressor.
O poder punitivo exerce opressão contra as mulheres, de modo que chega a ser invisível a repressão sofrida. A mulher ainda é um ser que tem sua individualidade e sua capacidade de autodeterminação desconsideradas. Esse poder punitivo se manifesta silenciosamente pelo controle da sexualidade feminina. As mulheres são reprimidas por meio de sua sexualidade. Em consequência, o medo de ser “puta” as oprime e molda seu modo de vida. Mulheres com vontade própria não são compreendidas e são tidas como “folha seca”, que “vai onde o vento quer”. Veja, a propósito, a letra da música “Folha Seca”, de Amado Batista:
Fazia um dia bonito quando ela chegou,
Trazia no rosto as marcas que o sol queimou,
Disse que estava cansada sem lugar para ficar,
Tive pena do seu pranto e disse pode entrar.
Como se me conhecesse ela me contou,
Seu passado de aventura
Onde ela passou,
E eu sem nem um preconceito,
Com amor lhe aceitei, um mês e pouco mais tarde,
Com ela me casei.
Mas um dia sem motivos ela me falou,
Vou me embora desta casa e do seu amor,
Pra dizer mesmo a verdade eu nunca te amei,
Por teu pão e tua casa foi que eu fiquei.
Era uma tarde tão triste quando ela partiu,
Na curva daquela estrada ela então sumiu,
Era como folha seca que vai onde o vento quer,
Me enganei quando dizia tenho uma mulher.
A música retrata um homem protetor, salvador: ela estava “perdida”, desamparada e ele a salvou, a acolheu em sua casa. Ela era uma “puta”, tinha um “passado de aventura”, mas mesmo assim ele a aceitou sem preconceito, e mais: casou-se com ela. Um dia, ela resolve ir embora e lhe diz a razão: “eu nunca te amei”, mas para ele isso não é um motivo. Afinal, o que mais uma mulher poderia querer da vida além de um casamento, um homem que lhe desse casa e comida? Ele não consegue vê-la como um ser livre, independente, com autonomia e capacidade de decidir o próprio destino: “Ela é como folha seca que vai onde o vento quer”. Por fim, ele diz “me enganei quando dizia tenho uma mulher”. Ele pensava que tinha uma mulher = submissa, escrava, anulada em suas vontades, subalterna e submissa às vontades do Homem; quase uma coisa, da qual é possível se apropriar. Conclusão: ela era uma “puta” mesmo.
Uma mulher “puta” não é apenas a que faz sexo mediante pagamento (prostitutas ou profissionais do sexo), mas aquela “que dá para quem ela quer”, ou seja, faz sexo com quem decide que fará. Enfim e em suma, é uma mulher que não aceita que o Estado, a família, a igreja ou quem quer seja lhe diga com quem, onde, quando e de que forma manterá suas relações sexuais.
Interessante notar que, tanto uma como a outra, quando a mulher pratica um homicídio, contra seu marido ou companheiro, será julgada tendo em vista a mesma pena prevista para os homens. Elas serão punidas da mesma forma. Não há nenhuma causa de diminuição de pena, nem atenuante que a socorra especificamente.
Por outro lado, a Lei 13.104/2015 introduziu, no ordenamento jurídico-penal brasileiro, a figura do feminicídio, um nome iures dado a uma nova qualificadora do crime de homicídio (art. 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal), fortalecendo o poder punitivo e estabelecendo novas causas de aumento de pena (art. 121, § 7º, Código Penal). No entanto, esta lei resume-se a dizer: “homens, não matem as mulheres”. Esta mensagem talvez diga alguma coisa acerca do nosso estado civilizatório: as mulheres ainda são subjugadas por serem mulheres. Sofrem na pele as agruras do poder punitivo em sua forma mais cruel: a produção da morte. A lei não trouxe nenhum benefício ou empoderamento às mulheres. Antes tivesse regulamentado a prostituição, pois aí sim teria a simbologia de afirmar o poder e o direito de as mulheres disporem do próprio corpo, de sua sexualidade, sua vida e seu destino.
Portanto, percebe-se que a proteção que o sistema penal afirma exercer em prol das mulheres manifesta-se como uma tecnologia discursiva que, alarmando defendê-las, nada mais faz do que complementar a estrutura social opressora e o controle do comportamento feminino por meio da vigilância moral do seu corpo e da sua sexualidade.
Bartira Macedo de Miranda Santos é professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Federal de Goiás; Pós-doutoranda pela PUC-GO e bolsista Capes.
[1] Trecho do nosso livro Defesa Social: uma visão crítica. São Paulo, Estúdio Editores.com, 2015, p. 13, Coleção Para Entender Direito. Organizadores: Marcelo Semer e Márcio Sotelo Felippe.
[2] “Folhetim”, composição de Chico Buarque de Holanda, que se tornou conhecida na voz de Gal Costa.
[3] “Ai, que saudade da Amélia”, canção de Mário Lago e Ataufo Alves.
[4] “Samba da benção”, composição de Vinicius de Moraes e Baden Powell.
[5] Evandro Lins e Silva, A defesa tem a palavra: o caso Doca Street e outras lembranças. Há três edições pela Editora Aide, sendo elas de 1980, 1984 e 1991. Recentemente, em 2011, a Editora Booklink reeditou o livro.
[6] Posse sexual mediante fraude
Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude:
Pena – reclusão, de um a três anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze anos:
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
[7] Atentado ao pudor mediante fraude
Art. 216. Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
Pena – reclusão, de um a dois anos.
Parágrafo único. Se a ofendida é menor de dezoito e maior de quatorze anos:
Pena – reclusão, de dois a quatro anos.
[8] Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, volume 8, p. 143.
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