Na tarde do dia 30 de março de 1981, ouviram-se seis tiros na porta do Hotel Hilton, em Washington. O alvo dos disparos era o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. O autor, John Hinckley Jr., era até aquele momento um ilustre desconhecido do grande público, mas não do sistema penal e de psiquiatras, por já ter sido preso por perseguir Jimmy Carter, quando este ocupava a Casa Branca. O ataque a Reagan resultou em sérios ferimentos nele e em mais 4 pessoas. Hinckley foi preso no local e o que se seguiu foi o choque ao vir à tona os motivos para sua atitude: ele teria desenvolvido uma obsessão pela atriz Jodie Foster, após assistir inúmeras vezes a Taxi Driver, de Martin Scorsese.
No filme de 1976, que ganhou a Palma de Ouro no festival de Cannes e foi indicado ao Oscar, Jodie Foster interpreta uma ninfeta, prostituída pelo personagem de Harvey Keitel, e que se torna objeto de paixão doentia por parte do personagem de De Niro, Travis Bickle, que se apresenta como veterano do Vietnã, que teria tido dispensa militar, e dirige um táxi à noite pelas ruas de Nova York. Solitário e incapaz de sair do ciclo vicioso da própria vida, ele vê a salvação de Iris (Foster) como sua missão, mesmo que a garota não deseje ser salva. E mais não contarei, para não estragar a história para quem ainda não assistiu ao filme.
A ironia na triste história de John Hinckley Jr. é evidente: um homem desenvolve paixão obsessiva por uma atriz, ao assistir a um filme em que ela interpreta uma adolescente que é objeto de interesse doentio de um homem. Para demonstrar seus sentimentos pela atriz, o homem atira contra um ex-ator de cinema, que se tornou presidente (ato que tem paralelo com o filme). E, no pior exemplo de como a vida imita a arte, a ficção é apropriada de tal forma por John Hinckley Jr., que ele chegou a imitar o penteado estilo moicano de Travis Bickle. Qualquer semelhança com um roteiro de Hollywood não é mera coincidência.
Mas o que explica essa paixão platônica por alguém que não passa de um personagem de cinema? Esse é um dos sintomas da síndrome de Clárembault, assim batizada em homenagem ao psiquiatra francês Gaëtan Gatian de Clérambault, que, em 1921, publicou um estudo sobre um tipo específico de erotomania, cujo objeto de interesse possui um status social mais elevado do que o do sujeito que o persegue. O caso que Clérambault apresenta trata da perseguição de uma francesa de 53 anos ao rei Jorge V. Ou seja, trata-se de paixão, mais do que platônica, delirante. Segundo o psiquiatra, a síndrome de emoções patológicas apresenta evolução que passa por três estágios, que são esperança, despeito e rancor. Como o sentimento não é correspondido, até porque desconhecido pelo alvo do mesmo, pode se transformar em agressão física ao objeto do delírio. E como tudo começa, como nasce a esperança, o primeiro estágio? A partir de uma declaração de amor, recebida por sinais ou mesmo telepaticamente, ou por declarações públicas, que o portador da síndrome entende como tendo sido dirigidas a ele.
O caso de John Hinckley Jr. não é único, em maior ou menor grau, encontram-se histórias de perseguidores, admiradores e pretendentes, de ambos os sexos, que confundem obsessão com amor. Esse tipo de manifestação de afeto doentio e ilusório desenvolve-se em sujeitos com traços de personalidade hipersensível, desconfiados ao extremo e que se acreditam superiores às outras pessoas. Por isso, seu objeto de afeição delirante se destaca em inteligência, posição social, aparência física, ou uma combinação desses atributos. A ilusão de ser amado por alguém especial é uma forma de escapar da solidão inerente à dificuldade de se relacionar de forma real e igualitária, significando a impotência de estabelecer um vínculo sem caráter delirante. E o que no começo parece apenas uma demonstração exagerada de interesse pode terminar de modo trágico, como consequência de um profundo desequilíbrio psíquico.