A surpreendente vitória de quem sabe perder.

Assistindo à vida esvair-se dos olhos de meu Yorkshire, quando finalmente resolvi poupá-lo do sofrimento que meu egoísmo lhe demorava, agarrei-me mais fortemente à minha própria vida, como que me conscientizando da certeza de um dia também chegar a minha hora de partir. Ficou mais claro, para mim, que quanto mais vivemos, mais perdas acumulamos, e quanto mais perdemos, mais queremos viver, agarrando-nos ao que nos resta com a força que nos sobrou.

Todo chavão é muito verdadeiro, não há dúvidas de que ficamos mais fortes à medida que vamos sobrevivendo ao que a vida nos tira. Ouço isso desde pequeno, quando morreu meu querido Porquinho da Índia, quando perdia nos jogos de tabuleiro, quando os trapalhões não sorteavam a minha carta, quando sentia arder o merthiolate vermelho. Porque inclusive a gente já perde quando nasce ao ter que deixar o ventre acolhedor de nossa mãe, mas ganha a vida lá fora. A vida quer que a gente sempre ganhe.

Minha mãe sem dúvida foi minha melhor e maior referência de mundo, sendo seu sorriso gostoso meu mais eficiente combustível de vida. Ela se foi aos poucos, enquanto eu me despedia dela e me preparava para aquele amanhã sem sua presença. Doeu além da conta não a ter mais comigo, e fui obrigado a procurar forças em mim mesmo para enfrentar a lida diária. Sua morte me fortaleceu muito, tornando-me mais autônomo emocionalmente, obrigando-me também a me aproximar de meu pai, a quem até então eu não dava a devida atenção. Irônico consolo, no fim inexorável da morte existe um recomeçar.

A morte é a perda absoluta de algo fora de nós, pois leva sem volta, sem chances de conseguir de novo. Mesmo assim, dentro da gente há crescimento, que as memórias prazerosas de quem se foi alimentam enquanto reorganizamos nossos sentidos. Da mesma forma, perder traços do que nos define naquilo que somos parece ser irreversível. Voltar a confiar em quem nos traiu, no político que se envolveu em falcatruas, no artista enredado em escândalos é um caminho difícil a ser percorrido. Confiança é muito parecida com a morte nesse sentido, pois ela parece teimar em ir embora para sempre. Mas mesmo o caráter possui a capacidade de regenerar-se, pois a vida não condena ninguém de forma perpétua.

Perder-se enquanto se explora a vida em suas múltiplas oportunidades e armadilhas, ao contrário do que possa parecer, é benéfico – como disse Lispector, perder-se também é caminho. Muitas vezes temos que levar o fel até a boca, sentir-lhe o amargor, para então evitá-lo em nossas vidas, pois a experiência pode ser – e quase sempre é – mais didática do que a teoria discursiva. Sofrer as consequências do que fizemos é, por isso, um aprendizado incomparável, embora doloroso, pois lidamos com o pior de nós mesmos e temos que fazer alguma coisa daquilo tudo, caso queiramos continuar caminhando. Os porres que tomei, os empregos que me dispensaram, as garotas e amigos que perdi fizeram com que eu enxergasse meu lado ruim e tentasse mudá-lo. É assim com todo mundo.

A vida não gosta de gente acomodada e resignada e trata de nos chacoalhar o tempo todo, de forma dolorida, mas, na maioria das vezes, colhendo bons resultados. Vamos nos tornando mais gente após os reveses e tsunamis emocionais, pois as dores nos absolvem de nossos pecados imaginários, aparam as arestas que emperram nosso aprimoramento pessoal. Por mais que tentemos fugir aos desvios de caminho e ao enfrentamento do que restou de nossas escolhas, será inevitável o recolhimento dos cacos, o reerguer-se, o pesar da culpa e do remorso que nos dão as mãos em direção a um futuro com menos erros.

As perdas são vitais, imprescindíveis e necessárias para que continuemos tentando de novo, dia após dia. Elas nos trazem de volta aos caminhos desejáveis, nos forçam a repensar nosso modo de vida, nos jogam em meio à escuridão aqui de dentro, para que sejamos resgatados por quem devemos nutrir amor verdadeiro. O sofrimento é libertador, aumenta nossa fé, nosso querer viver mais e melhor, nossa busca pelo conforto junto a quem amamos verdadeiramente. Como nos ensinam desde a mais tenra idade, perdas nos trazem ganhos, fraquezas nos fortalecem, tombos nos levantam, cada vez mais seguros do que somos, de quem amamos, do que não podemos e do que realmente queremos. A beleza disso tudo é que a vida é incansável e estará pronta a nos dar novas chances, que nascem a cada amanhecer, sempre, todos os dias, para mim, para você, para todos nós que ainda estamos vivos.

Imagem de capa: everst/shutterstock

Marcel Camargo

"Escrever é como compartilhar olhares, tão vital quanto respirar". É colunista da CONTI outra desde outubro de 2015.

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