Como a improvável amizade entre um vigarista carismático e um aristocrata francês mudou para melhor a vida dos dois
Por Liliane Charrier
Abdel e Philippe no Museu de Arte de Buchhein, na Alemanha, em 2012.
Abdel Sellou nunca esquecerá aquele primeiro encontro. O aviso da agência nacional de empregos chegou numa manhã chuvosa de dezembro de 1994, em Paris, e requeria que ele se candidatasse a uma vaga: “Auxiliar e companheiro para tetraplégico”. Abdel nem se deu ao trabalho de ler até o fim. Para ele, era sempre a mesma coisa: conseguir que assinassem o aviso para provar que fora à entrevista.
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Com 23 anos, ele já cumprira 18 meses de prisão por furto e assalto. Depois, arranjara emprego numa pizzaria e ficara tão entediado que fez todo o possível para ser demitido. Ele não tinha escrúpulos de se beneficiar do sistema. Durante dois anos, conseguiria ganhar quase tanto dinheiro quanto se trabalhasse.
A entrevista era na Avenue Leopold-‑II, Paris 16, uma região próspera da capital francesa. Na entrada de uma grande mansão, instalada num hectare de jardins verdejantes, Abdel ficou um instante parado. Então, num interfone embutido no muro de pedra, disse:
– O anúncio de emprego, para auxiliar e tudo mais, é aqui?
– Entre, senhor – respondeu o dono de uma voz cortês.
Uma entrada para automóveis, depois outra. Abdel finalmente percebeu que não estava na sede de uma empresa, mas numa residência particular. A casa era tão grandiosa – quadros de grandes mestres, cômodas de estilo imperial com puxadores dourados, mesas marchetadas de pé central – que o deixou sem fala. Com o jeans desbotado e o paletó puído, ele não combinava com a decoração.
Quando o homem na cadeira de rodas indicou que podia se aproximar, Abdel o olhou de cima a baixo.
– Bom dia, pode assinar aqui? – perguntou Abdel. – É para o seguro-desemprego.
Sem se perturbar, o homem na cadeira de rodas respondeu:
– Não está vendo? Não posso fazer nada sozinho. Sou tetraplégico e preciso de alguém que me ajude e me acompanhe por toda parte.
Philippe Pozzo di Borgo sentiu nesse rapaz rude um toque de selvageria que o encantou. Ele precisava ser sacudido, não inspirar pena.
– Está interessado? – perguntou a Abdel.
Interessado? Isso seria ir longe demais. Porém, assim como aquele feixe de infortúnio diante dele, condenado para sempre à sua cadeira de rodas, o rapaz não tinha nada a perder.
Abdel Yamine Sellou tinha 4 anos quando trocou a Argélia por Paris para morar com tio Belkacem e tia Amina, que não tinham filhos e se tornariam seus novos pais. Não era raro que famílias árabes do Norte da África dessem filhos a parentes que não podiam tê-los. Ele foi com o irmão Abdel Ghany, um ano mais velho. Seriam criados num país onde teriam de aprender uma nova língua, num apartamento de três quartos num conjunto residencial no bairro parisiense de Beaugrenelle.
Os pais adotivos não impuseram restrições. A porta estava sempre aberta. Abdel dava ordens aos novos pais para obter o que queria. Ninguém o impedia de assistir ao filme das noites de domingo nem verificava se chegava atrasado à escola ou fazia o dever de casa. E ninguém queria saber onde estava quando saía para furtar o supermercado da esquina. Ele aproveitou ao máximo a liberdade que lhe davam.
Qualquer desculpa valia para suas falcatruas: forçar crianças menores a lhe entregar os tênis novos na escola, servir-se diretamente das prateleiras do supermercado e de lojas esportivas sem passar pelo caixa e até furtar a câmera fotográfica de turistas americanos que faziam fila na base da Torre Eiffel. Uma, duas, 20 vezes Abdel foi levado para a delegacia. Assim que fez 18 anos, foi parar na prisão de Fleury-Mérogis.
Mas nada preparara o rapaz sem lei para passar os dias tomando conta de um inválido. Cruzar os braços de Philippe sobre a barriga para fazer o sangue circular, empurrar seu peito para a frente, carregá-lo até a cadeira, esticar seus membros, arrumá-‑los direito, calçar-‑lhe os sapatos.
Abdel passou a morar na casa e cuidava de Philippe desde bem cedo pela manhã. Reunidos quase por acidente, pouco a pouco Abdel começou a desenvolver afeição por aquele homem deficiente. Como escreveu na sua autobiografia: “Diante desse homem que tinha generosidade de espírito para rir, vi que havia mais a nos ligar do que apenas trabalho. Nada a ver com contratos ou obrigações morais. Ele abriu os meus olhos para um mundo que eu pensava odiar: o mundo daqueles que têm tudo.”
Até a queda de parapente que o deixara tetraplégico em 1993, Philippe, descendente da grande aristocracia francesa, fora um dos diretores da prestigiada Casa Pommery, produtora de champanhe. Agora, como não podia mais praticar atividades físicas, o intelectual esclarecido e amante das artes passou a apreciar ainda mais as atividades do intelecto. Abdel passava horas virando milhares de páginas de livros intermináveis.
“Que tijolos são os seus livros”, disse-lhe Abdel e, com ar travesso, acrescentou: “Seriam perfeitos para derrubar um policial!”
Abdel passara mais tempo aprendendo nas ruas do que na escola, mas, mesmo assim, começou a dar olhadelas furtivas para ler sobre o ombro do patrão. Na atmosfera silenciosa da mansão na Avenue Leopold-II, aos poucos ele também começou a mergulhar nos romances da biblioteca.
– Abdel, ponha para mim a palavra DESPADRADO na vertical, por favor. – À noite, Philippe adorava jogar palavras cruzadas. Abdel fez o que pediu, meio sorrindo, meio se queixando.
– DESPADRADO não existe! – protestou. – Isso é desesperado escrito errado.
Philippe prontamente o corrigiu.
– Despadrado é o padre que deixa a batina e volta a ser leigo.
Mau perdedor, Abdel pegou o dicionário para conferir. A sutileza de um vocabulário diferente lhe parecia tão entediante quanto as noites na prisão, nas quais, para matar o tempo, contava os quadrados do teto.
Em 2000, quando Philippe começou a escrever o livro O segundo suspiro, uma surpresa o aguardava. Abdel, que nunca escrevera nada, ofereceu-se para anotar o que Philippe ditasse. O patrão ficou contentíssimo: “Nada de problemas tecnológicos!” Hoje, Abdel admite: “Com Pozzo, ganhei 20 anos de estudo.”
Abdel, que também era motorista, às vezes tomava liberdades com o carro do patrão tarde da noite. Certa ocasião, quando a polícia apareceu à porta, Philippe cobrou de Abdel: “Então, Abdel, quer dizer que você acabou com o Jaguar?” Abdel não tentou negar o delito. “Eu lhe disse, senhor, aquele carro era perigoso. A gente não nota a velocidade em que está andando”, disse como desculpa. Depois, acrescentou, envergonhado: “Tudo bem, errei uma curva. Aqui estão as chaves. Foi só o que sobrou.”
Em 2002, encarregado de organizar a festa de 18 anos do afilhado de Philippe, Abdel convidou uma dançarina de strip-tease. “Você não faria isso com o seu próprio filho!”, zangou-se Philippe.
E, quando soube que Abdel, conquistador incorrigível, deixara na beira da estrada uma mulher que começou a lhe aborrecer, Philippe o repreendeu vigorosamente: “Mulheres não são mercadoria. Elas têm de ser admiradas e respeitadas! Você vai descobrir quando tiver uma esposa, e se sentir pronto a lutar por ela.”
A cada travessura, Philippe tentava levar o protegido de volta ao caminho certo.
Abdel ficou 10 anos com Philippe. Em 2004, os dois partiram para Saïda, na extremidade nordeste do Marrocos. Philippe buscava o clima ideal para seu corpo enfraquecido. Abdel, como sempre, estava de olho num novo projeto que pudesse animar a vida dos dois. Lá, não muito longe da Argélia onde Abdel nascera, eles discutiram a construção de um parque temático na praia.
Embora o projeto nunca chegasse a se realizar, Abdel se interessou pela bela recepcionista do hotel onde se hospedaram. Ela se chamava Amal e causava em Abdel a mesma sensação engraçada – como se estivesse nu – que tivera ao chegar à casa de Philippe pela primeira vez. Quando andava pela praia com Amal, ele se sentia desajeitado e meio bobo. “Abdel, gosto de você”, ela lhe disse, tomando a iniciativa, “mas se me quiser terá de se casar comigo.”
Philippe observava a distância e recordou depois: “No dia em que vi aquele machista de braço dado com Amal, aceitando como era capaz de ter decência e ternura, entendi que algo importante estava acontecendo.” Abdel sentia o mesmo. “Se Philippe não tivesse cruzado meu caminho, Amal teria sido apenas uma conquista sem futuro, como as outras.”
Hoje, Abdel, 42 anos, mora em Paris com a mulher, Amal, e os três filhos, Abdel Malek, Salaheddine e a pequena Keltoum. “Eles nasceram em 5/5, 6/6 e 7/7. Viu como sou ótimo em matemática?”, brinca ele. Quando não está em Paris, Abdel fica em Djelfa, na Argélia, onde cuida da sua fazenda de criação de galinhas.
Hoje Philippe mora em Essaouira, no Marrocos, com Khadija, a segunda esposa. Quando visita Paris, o casal se hospeda com Amal e Abdel no apartamento de três quartos no 15º distrito. Os anfitriões dormem na sala e deixam o quarto para os hóspedes. “Desse jeito posso cuidar dele”, explica Abdel.
Philippe continua a ser o “mestre Jedi” de Abdel. Fora o fato de não morarem mais juntos, nada mudou entre eles.
“Sempre conversamos sobre tudo, nenhum assunto é tabu. Histórias sujas, histórias tristes. Ele me ofereceu sua cadeira de rodas para empurrar como se fosse uma muleta para me apoiar. Ainda a uso assim até hoje.”
***
Fonte indicada: Seleções
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