A cada escolha que fazemos, abrimos mão de algo que também nos era valioso; é uma questão de atribuir valor à escolha. A cada decisão que tomamos, angariamos a admiração de uns e o repúdio de outros; é o preço que pagamos por sermos fiéis ao que acreditamos. A cada opinião que emitimos, encontramos eco nos semelhantes e críticas nos divergentes; é a consequência imediata por admitirmos uma posição, por não cabermos no conforto da alienação. Jamais estaremos em acordo completo com todos. E, muitas vezes, o simples fato de existirmos dentro de um conceito social e humano, pode despertar a ira alheia. Que venha a ira! É melhor sermos odiados do que sermos ignorados.
A citação “Os amigos dizem-se sinceros; os inimigos são-nos”, de autoria do Filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), serve como um espinho sobre as nossas mais profundas idealizações acerca dos relacionamentos sócio-afetivos. Cercamo-nos da proteção daqueles que se declaram nossos amigos, afetos e amores, apoiados na crença de que, dessa forma, estaremos protegidos do mal e da maldade. Difícil saber. O ser humano é movido pelas paixões e não é capaz de amar a ninguém mais, na mesma medida que ama a si mesmo. Salvo o amor aos descendentes, consanguíneos ou não, todo o resto fica menor diante da necessidade de auto-preservação e da ameaça à felicidade, ao sucesso e à segurança. Os amigos utilizam-se da sinceridade em doses calculadas, cujo limite é o nosso ponto de aceitação em relação ao pensamento despido do outro. Na verdade, não estamos de fato interessados em sinceridades sem limite. Estamos? Quantas vezes jogamos no colo do outro, questionamentos referentes ao nosso modo de agir, pensar ou nos apresentar, apenas interessados em uma opinião que venha ao encontro da nossa? A sinceridade é a verdade sem maquiagem. A sinceridade é ferramenta útil nas mãos do inimigo. Sem nos confrontarmos com ela, tornamo-nos pessoas gelatinosas e mornas, no conforto das “mentiras sinceras” que brotam das bocas, olhos e abraços daqueles que nos querem bem. Precisamos da sinceridade do inimigo para nos atiçar o desejo do bom combate, para nos despertar diante do opositor. Amigos não são sinceros o suficiente para nos fortalecer; os inimigos, sim.
Mahatma Gandhi, foi o maior líder pacifista de toda a História da humanidade. Embora usassem de atos violentos contra a população da Índia, os ingleses evitavam o confronto aberto contra Gandhi. O líder expressava seu desacordo contra a ocupação inglesa por meio de jejuns, marchas e desobediência civil, incentivando o não pagamento de impostos e o boicote a produtos ingleses. Em 1922, Gandhi foi detido em virtude de uma greve contra o aumento de impostos, que culminou com uma multidão incendiando um posto policial. Gandhi foi julgado e condenado a seis anos de prisão. Libertado em 1924, Gandhi continuou a orientar a população a posicionar-se contra a opressão inglesa de forma pacífica. Em 1930, liderou a marcha para o mar, na qual milhares de pessoas caminharam mais de 320 quilômetros para protestar contra o imposto sobre o sal. Para complicar ainda mais o cenário, as rivalidades existentes entre hindus e muçulmanos na Índia, retardaram o processo de independência. Com o início da Segunda Guerra Mundial, Gandhi voltou à luta pela retirada imediata dos britânicos do seu país. Por fim em 1947 os ingleses reconheceram a independência da Índia, contudo mantiveram seus interesses econômicos. As divisões internas levaram o governo a criar duas nações, a União Indiana, governada pelo primeiro ministro Nehru, e o Paquistão, de população muçulmana. A divisão interna gerou violenta migração de hindus e muçulmanos em direções opostas da fronteira, o que resultou em sérios conflitos. Gandhi aceitou a divisão do país e atraiu o ódio dos nacionalistas. Um ano após conquistar a independência, foi morto a tiros por um hindu rebelde, quando se encontrava em Nova Délhi, capital indiana, no dia 30 de janeiro de 1948. Suas cinzas foram jogadas no Rio Ganges, local sagrado para os hindus. É dele a citação “O fraco jamais perdoa; o perdão é uma das características do forte”. Gandhi tinha profundo respeito por seus inimigos. Ele não os temia, mas era temido por eles. E pagou com sua vida pela insurgência contra o sistema de opressão política e intolerância religiosa.
Considerado um líder universal, para quem não havia causa que não coubesse em seus braços, Martin Luther King, levou uma vida complexa de luta contra a opressão. Em sua obstinada missão de alimentar e vestir os pobres e famintos; lutar contra a discriminação de qualquer espécie e servir a humanidade, Luther King angariou uma multidão de admiradores e uma legião de inimigos. Líder religioso, King ficou à frente de um boicote contra as empresas de transporte em defesa de Rosa Parks, uma costureira negra que foi hostilizada por não concordar em ceder seu lugar no ônibus para uma passageira branca. O boicote teve grande adesão da população e durou mais de 300 dias, culminando em uma determinação da Suprema Corte que instituiu a dessegregação nos ônibus de Montgomery. Tendo obtido notoriedade para sua causa, King passou a ser citado como referência na busca pela igualdade racial. Nos anos seguintes, participou de inúmeros protestos, marchas e passeatas, sempre lutando pelas liberdades civis dos negros, de forma pacífica (à luz da filosofia pacifista de Gandhi). Luther King foi preso e torturado diversas vezes, e sua casa chegou a ser atacada por bombas. Em 1963, conseguiu que mais de 200.000 pessoas marchassem pelo fim da segregação racial em Washington. Nesta ocasião proferiu seu discurso mais conhecido, “Eu Tenho um Sonho”. Dessas manifestações nasceram a lei dos Direitos Civis, de 1964, e a lei dos Direitos de Voto, de 1965. Em 1964, Martin Luther King recebeu o Prêmio Nobel da Paz. No início de 1967, King uniu-se aos movimentos contra a Guerra do Vietnã. Em abril de 1968, foi assassinado a tiros por um opositor, num hotel na cidade de Memphis, onde estava em apoio a uma greve de coletores de lixo. É dele a citação “No final, não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos”.
Existe sempre a possibilidade de nos refugiarmos nas sombras da mediocridade. Sendo medíocres, jamais incomodaremos ninguém. Se não nos opusermos de forma direta ao que consideramos indigno, desumano, incorreto ou injusto, temos a chance de não sermos vistos; tornamo-nos invisíveis aos olhos dos opositores. A falta de posicionamento é uma poderosa arma contra a notoriedade e a vigilância dos divergentes. No entanto, se houver algo de vivo correndo dentro de nós; algo que nos mova na direção de um ideal humano de igualdade e justiça, acabaremos por entender que os inimigos são necessários. Os inimigos são o nosso contraponto; a referência daquilo que não aceitamos como legítimo. Aprendamos, então, a respeitar os inimigos; temos muito que aprender com a dureza de seus sinceros posicionamentos, ainda que venham na forma de atos e palavras mais agressivas. Olhemos nos olhos do inimigo, se quisermos conhecer a verdade sobre nós mesmos. Ouçamos a voz do inimigo, se quisermos, enfim, testar o quanto somos fiéis àquilo que nossa própria boca ousa proferir como verdade.