Vem. A casa não anda lá um brinco de tão arrumada, há poeira nos móveis, louça na pia, o sofá pede reforma, a despensa já não vai tão cheia, a bebida rareia. Mas aqui a gente se ajeita. Vem que juntos fica mais fácil. Primeiro a gente faz uma faxina e depois uma festa. Uma festa de arromba para dois convidados.
A gente canta e dança pra espantar a tristeza, esse fantasma de mil anos que vira e mexe nos assombra. Fantasma das gerações passadas e suas angústias, suas faltas, suas horas desesperadas, seu desamparo, sua desorientação e seu próprio assombro. A gente canta, dança e assombra a assombração. Canta, dança e transforma nossa alegria em fogo que há de incendiar a frieza das almas tristes, roubar-lhes um riso manso pelo canto da boca. E sobre nós há de pairar um calor gostoso, uma calma prima-irmã da eternidade. Um estado de espírito quente e bom.
Vem. Vem que quando o vizinho reclamar da música alta, a gente suspende a dança, senta e fala baixinho. Fala sem mais. Eu ouço as suas coisas e você escuta as minhas até elas se misturarem como longos e macios cachecóis entrelaçados em pescoços simples, trocando calor.
Vem sem medo de nossas conversas um dia rarearem e o silêncio nos abraçar comovido. Vem porque nesse caso teremos o mundo inteiro para observar quietos, mudos, estarrecidos de nosso canto calado e seguro da vida. Vem olhar a rua comigo em silêncio, brincar de assistir à novela na TV sem som, inventar diálogos patéticos para os mocinhos e os bandidos, enfiar palavrões nas falas das donzelas e gentilezas nas bocas dos vilões, transformar cenas importantes em tolas falas vazias de fila de banheiro.
Vem que a vida ainda tem tanto para nos dar e o tempo é tão pouco. Vem. Mas vem agora que o mundo aguarda o jeito que daremos às coisas. Vem que há tanta gente esperando de coração aberto uma alegria que lhes aqueça por dentro. Vem que uma floresta inteira de ternuras farfalha escandalosa suas copas e galhos e ramos de carinhos sob o vento generoso da bondade humana, soprando folhas coloridas de esperança por todos os cantos.
Vem que as minhas lembranças já não veem a hora de encontrar as suas e brincar de boneca, jogar bola na grama úmida sob o sol da manhãzinha. Vem que há tantos balões em minha saudade para colorir as festas infantis que repousam nas suas recordações de menina.
Vem que há muito pão e muito vinho por aí, esperando para serem ganhos com o suor do nosso rosto. Vem que a vida para nós há de ser um misto alegre de ações sucessivas girando em ciranda sob a luz da tardinha e os olhos de Deus: viver, trabalhar, amar, viver, viajar, comer, viver, descobrir, amar, viver, dividir, rezar, viver, amar, agradecer. Viver, amar, viver. Viver!
Vem, mas vem mesmo. Vem que o caminho é longo e é nosso. Vem que o amor adora gente hospitaleira e o perdão nos olha com olhos de menino pedindo espaço para sentar entre nós. Vem. Vem que o nosso filme vai começar, o sono vai chegar, o dia vai nascer, a vida vai passar e nós ainda seremos o que somos agora: vagos bichos leves seguindo para longe. Simples e humildes como as folhas, o vento e a esperança. Certos, livres e próximos, seguindo juntos para longe.
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