A entrevista era sobre livros, sobretudo o dele que estava para sair, e aconteceu num tempo em que esta crise de refugiados que nos entrou pelas notícias já existia mas sem o impacto destes dias – transformados pela imagem do naufrágio da humanidade simbolizado num menino morto numa praia. A entrevista dele ao Expresso era sobre livros, mas Umberto Eco falou sobre mais – incluindo este tema que o preocupa há muito, o da migração e dos refugiados. Recuperamos o que ele enunciou em abril agora que estamos despertos para uma tragédia que se estende não há dias nem semanas, mas há meses e quase anos. É uma reflexão dura: ” A Europa irá mudar de cor. E isto é um processo que demorará muito tempo e custará imenso sangue”. Mas também com fé no outros homens – nos que estão e nos que vêm: “A migração produz a cor da Europa”
Era abril quando entrevistamos Umberto Eco no seu apartamento em Milão. Atendeu o intercomunicador e abriu a porta de casa, revelando a sua alta figura e a cordialidade que seria uma constante durante a conversa. De eterno cigarro apagado entre os dedos – desistiu de fumar mas não se desfez do gesto – ofereceu café e sentou-se na sua poltrona de cabedal. Falámos da infância, da escrita, de jornalismo – central em “Número Zero“, o novo romance que saiu em maio em Portugal. Mas falámos também da Europa e dos longos processos migratórios que a configuraram. Para Eco, estamos a atravessar um deles e não será um caminho fácil nem desprovido de desafios. Eis alguns excertos da entrevista.
“Desde a juventude que sou um apoiante da União Europeia. Acredito na unidade fundamental da cultura europeia, aquém das diferenças linguísticas. Percebemos que somos europeus quando estamos na América ou na China, vamos tomar um copo com os colegas e inconscientemente preferimos falar com o sueco do que com o norte-americano. Somos similares. Cultura não quer dizer economia e só vamos sobreviver se desenvolvermos a ideia de uma unidade cultural.”
“Quando atravesso a fronteira sem mostrar o passaporte e sem ter de trocar dinheiro, sinto um grande orgulho. Durante dois mil anos, a Europa foi o cenário de massacres constantes. Agora, esperemos um bocado: mesmo que o mundo hoje seja mais veloz, não se pode fazer em 50 anos o que só fomos capazes de fazer em dois mil. E mesmo indo nessa direção, não sei como os países europeus poderão sobreviver: estão a tornar-se menos importantes do que a Coreia do Sul, e não apenas do ponto de vista industrial. Culturalmente, está-se a traduzir mais livros lá do que em França.”
“Entidades nacionais como Portugal ou Itália tornar-se-ão irrelevantes se não fizerem parte de uma unidade maior. Mas nada disto se constrói em pouco tempo. O problema da Europa é estar a ser governada por burocratas. Uma vez, uma instituição europeia – não me recordo qual – decidiu criar uma comissão de pessoas sábias. Estava lá Gabriel García Márquez, Michel Serres e eu próprio. Os outros convidados eram burocratas europeus. Cada reunião servia para discutir a ordem de trabalhos da reunião seguinte. Aquilo era o retrato da Europa: pessoas a governarem uma máquina autorreferencial. Porém, é o que temos. É como a democracia segundo Winston Churchill: um sistema horrível, mas melhor do que os outros.”
“Estou muito preocupado, não por mim, mas pelos meus netos. Escrevi-o há 30 anos: o que se passa no mundo não é um fenómeno de imigração, mas de migração. A migração produz a cor da Europa. Quem aceitar esta ideia, muito bem. Quem não a aceitar, pode ir suicidar-se. A Europa irá mudar de cor, tal como os Estados Unidos. E isto é um processo que demorará muito tempo e custará imenso sangue. A migração dos alemães bárbaros para o Império Romano, que produziu os novos países da Europa, levou vários séculos. Portanto, vai acontecer algo terrível antes de se encontrar um novo equilíbrio. Há um ditado chinês que diz: ‘Desejo-te que vivas numa era interessante’. Nós estamos a viver numa era interessante.”
“Não se deve perguntar porque haverá derramamento de sangue: é um facto. Vejamos a França. É o caso típico de um país que acreditou poder absorver a migração. Porém, por um lado, impôs logo aos migrantes a ética da República; e, por outro, arrumou-os nos bairros remotos. É muito raro encontrar um migrante a viver ao lado de Notre-Dame.” NUNO BOTELHO
“Porque é que um muçulmano em França se torna fundamentalista? Acha que isso aconteceria se vivesse num apartamento perto de Notre-Dame? A sua integração não foi completa nem poderia ser. De novo, é um facto. A migração a longo prazo pode produzir integração mas a curto prazo não, e a não-integração produz uma reação, que pode ser de ódio.”
“O inimigo é sempre inventado, construído. Precisamos dele para definir a nossa identidade. A extrema-direita italiana acredita que são os ciganos ou os migrantes pobres, ou o Islão em geral, ainda que o Islão possa assumir muitas formas. Ora, o Estado Islâmico não é o Islão, no sentido em que Hitler não era a cristandade.”
“A Idade Média não existe, porque tem dez séculos. É uma construção artificial. De qualquer forma, vemos que é uma época de transição entre dois tipos de civilização. E provavelmente – falávamos de migração – estamos numa era de transição, que é sempre difícil. A questão é: houve alguma era que não fosse de transição? Resposta: não. Mas houve momentos em que cada um vivendo no seu país não se apercebia de que havia uma transição a acontecer no mundo.”
“Qual o papel do intelectual hoje? Não dar muitas entrevistas! [risos] Falando a sério, penso que é duplo. Primeiro, é dizer o que as outras pessoas não dizem. Não é dizer que há desemprego em Itália. Segundo, não é resolver os problemas imediatos, é olhar para a frente. Se um poeta está num teatro e há um incêndio, não se põe a recitar poemas: chama os bombeiros. Pode é escrever sobre incêndios futuros.”
“É impossível pensar o futuro se não nos lembrarmos do passado. Da mesma forma, é impossível saltar para a frente se não se der alguns passos atrás. Um dos problemas da atual civilização – da civilização da internet – é a perda do passado.”
Fonte indicada: Expresso
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