Ninguém gosta de levar tombo. Assim que se concretiza a queda, a reação imediata é olhar em volta; pior que cair só cair com testemunhas. O tombo dói moralmente. Mas, dói fisicamente também. Até que cheguemos à calejada idade adulta, devemos ter ralado os joelhos dezenas de vezes. E dói! Somos crianças, levamos tombos por inexperiência ou ousadia; e o adulto que nos assiste declara solenemente “Não foi NADA!”. Se pudéssemos reagir à tamanha falta de empatia… Mas não podemos! Somos menores, mais fracos, dependentes e estamos no chão. E permaneceremos no chão cada vez que nossa dor, vergonha, medo, habilidade ou dificuldade for reduzida a NADA.

Levar um tombo é apenas uma das milhares de agruras enfrentadas com regularidade por cada um de nós na elaborada tarefa de crescer. Quando somos crianças, é natural que a nossa curiosidade e atração pela aventura, sejam infinitamente superiores à prudência ou avaliação do risco. Somos movidos pelo impulso, somos atrevidos, inventivos, criativos e vorazes. Queremos tudo, queremos muito e queremos agora. Somos capazes de perceber o mundo sob uma ótica incompreensível para os adultos. O nosso filtro é uma peneira rústica, tão diferente do sofisticado filtro dos adultos, capaz de separar o que é real do que é fantasia. Somos um mistério para os adultos. E, por isso, eles ficam desconfortáveis na nossa presença. Reagem de formas estranhas à nossa inata capacidade de fuçar, questionar e inventar. Os adultos não são capazes de enxergar nossas fraturas internas. Eles entendem o que estiver aparente, externo, exposto.

As fraturas internas nos pertencem. Nascemos assim, quebrados, desconstruídos, desencaixados. Somos felizes assim; e poderíamos sê-lo eternamente caso fosse possível ser criança pra sempre. Mas não é! Precisamos descobrir a fórmula que resulta no crescimento, que nos leva a aprender, amadurecer e entender o mundo sob a ótica desses complicados adultos. Entretanto, eles (os adultos) já sabem a fórmula; eles a criaram e manipularam de tal forma que precisamos deles para conseguirmos utilizá-la.

Ocorre que os adultos não são muito afeitos a essa coisa de compartilhar e cooperar. É uma dificuldade lidar com isso pra eles. Portanto estamos diante de um enigma, cujo guardião não fala a nossa língua. Os adultos são crianças que se perderam. Não são capazes de resgatar o que já foram; não estão aptos a acolher aqueles que ainda estão lá, naquele lugar onde não é possível voltar. E alguns deles decidem, inadvertidamente, gerar crianças; crianças perdidas trazendo ao mundo crianças recém-nascidas. Vejam só! Há que se procurar um jeito de encontrar o caminho: uma bússola, um mapa, uma pista, as estrelas. Mas como ler estrelas, quando não se tem tempo de olhar pro céu; quando se optou por viver num lugar cujo céu não tem mais estrelas?

Ao serem expostas ao convívio com adultos distantes de suas necessidades de afeto, cuidados e orientação, as crianças acabam sendo afetadas e têm a formação de seu caráter cognitivo, social e afetivo, deformada. Pais extremamente permissivos são tão prejudiciais ao desenvolvimento das crianças, quanto aqueles demasiado intolerantes. Os laços e relacionamentos criados pela afetividade não são baseados apenas em sentimentos; mas também em atitudes. Isso significa que em uma relação existem várias atitudes que precisam ser cultivadas, para que a troca entre todos os envolvidos prospere e seja saudável. Os adultos abraçam uma missão bastante complexa quando tomam a decisão de ter filhos; essas crianças dependerão de seus cuidados, de sua proteção, orientação e afeto por muito tempo. Esses adultos precisam estar preparados para assumir uma tarefa árdua de aprender a ser o ponto de segurança e autoridade e, ao mesmo tempo, a fonte do amor incondicional.

Afetividade e cognição não são funções exteriores uma à outra. Ao reaparecer como atividade predominante, uma incorpora as conquistas da anterior. Somos cíclicos e complexos, sentimos e pensamos, pensamos e sentimos. As emoções modulam nossa capacidade de aprender; a capacidade de aprender nos emociona.

O desejo interminável e belo pelo conhecimento e pelo afeto nos impulsiona sempre à procura de incríveis aventuras e viagens por lugares e situações ainda não experimentadas. Vamos nos construindo e transformando a cada instante, em nosso íntimo e com o outro. Voltamos a ser as crianças recém-nascidas a cada nova situação desafiadora e desconhecida. Os terrenos acidentados nos encantam e seduzem. Os tombos são inevitáveis. Então, que nossas fraturas internas sejam percebidas, aceitas e curadas em qualquer circunstância.

Ana Macarini

Ana Macarini

"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

Recent Posts

Mãe expõe áudios de filha que foi abandonada pelo pai: “Nunca te fiz mal, pai”

Em mensagens de cortar o coração, a menina deixa evidente a falta que o pai…

2 horas ago

Mulher que teve experiência de quase morte detalha visão assustadora que teve ao ‘deixar seu corpo’

Cirurgia radical levou paciente ao estado de morte clínica, revelando relatos precisos de uma “vida…

4 horas ago

Agnaldo Rayol falece de forma trágica aos 86 anos e deixa legado na música brasileira

O cantor Agnaldo Rayol, uma das vozes mais emblemáticas da música brasileira, faleceu nesta segunda-feira,…

1 dia ago

Padre causa polêmica ao dizer que usar biquíni é “pecado mortal”

Uma recente declaração de um padre sobre o uso de biquínis gerou um acalorado debate…

1 dia ago

A triste história real por trás da série ‘Os Quatro da Candelária’

A minissérie brasileira que atingiu o primeiro lugar no TOP 10 da Netflix retrata um…

1 dia ago

Você sente “ciúme retroativo”? Ele pode arruinar as relações

O ciúme retroativo é uma forma específica e intensa de ciúme que pode prejudicar seriamente…

3 dias ago