Por Paula Peregrina
A música. Esta entidade etérea que se manifesta no ar, incapturável, dispensa a linguagem de códigos e conversa na língua dos sons. Esta, mesmo quando dotada de letra não precisa ser explicada. Causa sensações. Diferente de tantas outras formas de arte, seja a literatura, o cinema, a pintura, o desenho, a escultura, ou o que for, é muito mais raro topar com alguém que pergunte: “o que essa música quer dizer?” do que acontece com qualquer outra forma de arte. Talvez a grande diferença esteja no fato de que a música interage com os ouvidos, com as sensações – vibrações.
As crianças, por exemplo, perguntam sobre as coisas que veem. São categóricos nos discursos infantis perguntas como: “por que o céu é azul?”; “Por que aquela moça é tão feia?”; “Por que aquela pessoa não tem o braço?”; “Por que as pessoas são de cores diferentes?”, e por aí vai. São perguntas feitas pelos olhos, e estes apreendem rótulos que os ouvidos ignoram. Os ouvidos são mais receptivos. Encontram respostas e, logo, se calam. É certo que seja bem menos comum que uma criança pergunte: “Por que o som do violino é diferente do som do violão?”; “Por que as pessoas têm vozes diferentes?”; “Por que o mar faz esse barulho?”. Por alguma razão, as interrogações dos ouvidos parecem ser silenciosas ou não incomodarem tanto quanto as questões dos olhos a ponto de serem manifestas. Não se fala de uma pessoa que ela é “uma pessoa de audição” com a mesma conotação qualitativa com que se fala que ela “é uma pessoa de visão”. No entanto, de que vale a alta e clara vista sem a escuta?
É como se os olhos tivessem em sua composição lentes de interrogação e logo nos questionássemos sobre tudo o que vemos. Já os ouvidos, seletivos, identificam instintivamente os ruídos ritmados, das percussões de antigas religiões aos lamentos vocalizados, dos gemidos de dor e prazer à combinação de instrumentos – hipnotizam. E quem ousa perguntar o que dizia o canto das sereias? – A música diz tanto que não importa o que quer dizer. Entretanto, enquanto presente no sistema de decodificação do verbo, dos códigos linguísticos, ouvido é parte que ouve e questiona palavras ditas, ouvidas, escritas, entidades de som e imagem consecutivas: fogem à singularidade da escuta. Racionalizam os gestos. Olhouvido.
Todavia, todos escutam música, todos entendem música, e essa compreensão talvez resida justamente no fato de não perguntarem sobre ela. Pode-se até buscar a tradução da letra de uma melodia adorada quando cantada em outra língua, mas isto diz da narrativa contida na música, e não daquilo que a levou ser amada: o som, o ritmo, os silêncios que paradoxalmente a faz ser o que é. O som é imponente, se coloca diante de nós simples mortais, sem permitir que se questione demais. Aos que a isso se arriscam, bem, se não, deveriam sempre se tornarem músicos.
Entidade indizível, habitante do movimento incessante e invisível, guarda, revela, emana emoções: afetos diversos e distintos ousam viver em uma nota só. Tristezas e angustias, alegrias e êxtases, frustrações, esperanças, raiva e resignação. Tudo pode estar presente na mesma canção. Arte do presente impossível de congelar uma só parte, no máximo se rende a repetição. Ah, a música sempre me diz algo sobre o infinito!
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