A expressão que diz de quem se sente como se fosse “o centro do universo” sempre é associada a uma postura orgulhosa, cheia de si, “metida”, individualista, vaidosa, desinteressada do alheio.
O gesso do costume de interpretar a coisa como uma vez a aprendemos e tantas vezes repetimos nos impede de ver além – as palavras são geniosas. Nessa linha de pensamento, dificilmente nos perceberemos como aquela pessoa que se sente o centro do universo. Mas tantas vezes agimos como se assim fossemos. E é rotineiro. E é invisível. E parece cruel. Injusto até. Condenamos o mundo…
Você reprime aquela intensa vontade de cantar na rua acompanhando desafinadamente a canção que escuta pelos fones de ouvido, errando a letra e acertando a alma das esquinas, aquele desejo de libertar-se. Se preocupa com os olhares condenadores, com os ouvidos que vão te ouvir, com as declarações de loucura que você nunca terá que assinar.
Quem se importa? Quem se incomoda? A rua ampla, você em movimento. Nada é privado. Ninguém é obrigado. Todos passando, inclusive você. Ninguém que saiba quem você é. E se souber, que diferença faz? De um canto a um cumprimento estamos a um passo além. Encanto ou desencanto sincero. Só quem te ama é capaz de te ouvir cantar e desafinar sem constrangimentos.
Entre o bom senso e o medo de ser: uma linha tênue. Bom senso, na verdade, temos muito pouco. O que temos em demasia é medo do julgamento de quem não importa. De quem não se importa. Qual o problema de seus braços acompanharem as notas da melodia que embala seus pensamentos. De gesticular ou balbuciar as fantasias que te acompanham pelo caminho para variar. De olhar com atenção as banalidades que te convidam a cobrir os olhos de mais do que sinais vermelhos, verdes, amarelos, asfalto cinza, massa de movimento cores a mais, cores a menos, do céu nublado ou do vazio de quem desistiu de ver o que quer que seja? Aceite o convite. E quem te chama de maluco talvez quisesse também render-se ao desejo parar para ver o que quer seja.
Será que a sua roupa manchada de café é assim tão ofensiva para quem te “observa” andar na rua? Ou seu penteado que não pegou bem? O corte de cabelo que não deu certo? Ou, talvez tenha dado certo demais, mas o seu espelho tão acostumado com a rotina estranha te mete agonia pelo silêncio do reflexo. Dói? E você pensa mesmo que todos vão perceber que você dormiu fora porque está com a mesma roupa de ontem?
E se sim, alguns talvez, todos nunca, é sério que você pensa que todo mundo, até quem não te conhece, presta assim tanta atenção em você? Se valeu a pena, se está tudo OK, está dando conta do dia, não prejudicou ninguém, qual o problema? Se alguém se importa, você se importa? Por que? Quem é que te empresta tanto a vida para que esteja sempre em dívida?
Não vai usar aquela roupa que você adora porque uma vez alguém te criticou, uma pessoinha que seja, e vestido com ela parece que a cada centímetro de passo um quilômetro de olhos te pressiona contra o chão? Pelo sim ou pelo não, pela enxurrada com a qual o carro te presenteou numa manhã de chuva, ou por ter esquecido dos brincos, pela falta de gel no cabelo, pela espinha que te cresceu radiante no nariz, pelas olheiras de insônia ou de uma noite de trabalho que você não teve tempo ou disposição de cobrir com maquiagem, pelos olhos vermelhos de choro ou de cansaço que o colírio não pôde disfarçar.
Quantas defesas diárias você precisa elaborar para justificar os pequenos desvios? Todo esse desgaste que diminui nossa humanidade, por coisas tão mesquinhas e impulsos inofensivos, pela crença de que todos os olhares são seus e que te jogarão na fogueira simplesmente por ser, tanto mais é inconsciência de que a fogueira é sua e entre os olhares ofendidos ou cativados há tantos outros presos em seus próprios medos – invisíveis cúmplices. Se jogue: você não é o centro do universo.
Pode até ser que te critiquem baixinho no pensamento, até cansarem ou decidirem por te cultuar no altar das aberrações queridas – porque se ferir ou se exaltar por coisas tão simples? Outros te evitarão e falarão de você nos corredores – e não é melhor que não façam parte da sua vida? Por que se ofende? O que te tomam ou acrescentam? E assim aparecem ditados: “falem mal mas falem de mim” e coisas afim.
Mas a verdade, talvez triste para os que acostumaram a se alimentar da vaidade negativa, é que por coisas assim, muito poucos falam, muito poucos se importam. A sua espinha é maior para você do que para qualquer outro, muitos nem vão perceber. O seu canto na rua, de errado só se for no tom, mas pode até alegrar alguém lhe livrando do tédio das faces emburradas e frias. Sua roupa desaprovada pode inspirar outros – doar autenticidade aos guarda-roupas mofados. Sua andança pode embalar bailes inteiros na imaginação coletiva das avenidas gigantescas.
Faz tão pouco sentido se incomodar tanto com o que não deveria incomodar, quando não estamos nem impondo, nem invadindo, nem desrespeitando ninguém! Já é tanto cuidado, tanta regra, tanta pressão necessária a enfrentar cotidianamente. Por que então se recusar as pequenas loucuras, ou se torturar pelos supérfluos imprevistos?
A ironia está em saber que mesmo quem acha que faz tudo nos conformes pode ser alvo – ou seta. Pouco deveriam nos perturbar aqueles que perdem seu tempo de vida a julgar e a falar dos outros pelos cotovelos, pois é certo que bem pouco gozo têm no próprio viver – haverão de falar sempre, haverão de falar muito, haverão de encontrar problemas ou inventá-los onde não tem, haverão até de criticar a ausência de problemas “perfeito de mais, alguma coisa errada tem!”. Quem se importa? Eles também não são o centro do universo.
Essa pressão que nos tenta reprimir a humanidade atacando nossos anseios mais superficiais, que nos cobre de culpa por coisas que não fizemos ou pelo que não prejudica a vida de ninguém, essa distorção de interesses, que aterra a vida privada enquanto a orgia é pública, cria um campo de batalha entre introversão e extroversão, um arsenal de sintomas entre desvios de conduta, depressão e suicídio.
A pressão faz escapar. A pressão anula. A pressão isola – cada corpo se vira como pode e pelo isolamento nos sentimos como se fossemos o centro. Mas se fosse assim, o que seriam então todos os outros? O que disso fica explícito é que toda essa pressão confundida com bom senso, ao contrário do que seria se bom senso de fato fosse, nos impede de desfrutar do que de melhor existe na convivência. Isolados assim, centralizados e paranoicos, sequer convivemos – suportamos.
Conseguiremos plenamente a cultivar o bom senso quando lapidarmos o seu conceito dos julgamentos mesquinhos, da hipocrisia da aparência, do olhar pontiagudo pronto para ferir. Bom senso é questão de empatia, sem espaço para preconceitos – exige um raciocínio demasiadamente humano e presente em cada situação para distinguir entre o que diz respeito apenas a um e o que diz respeito a todos.
De resto, poucos o tem, e dos que tem, são bastante destemidos para abraçar uma árvore, conversar consigo mesmo, sorrir sem motivo, ou qualquer outra coisa que não é da conta de mais ninguém a não ser quem queira fazer parte. Seguem em paz do seu jeito – deixam de ser centro, deixam de ser meio – aprenderam a ser canto.
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