Lucy Rocha

“Ainda sinto falta.” Amor ou cegueira emocional?

Imagem de capa: nd3000/shutterstock

Leio relatos de todo tipo de abuso. Os absurdos que se tolera na convivência entre pessoas perversas e abusadores em geral são os mais variados: agressões verbais, acusações, violência emocional, psicológica e, por vezes, física, abandono, escárnio, rejeição, humilhações, ameaças, falta de suporte moral e financeiro, falta de compreensão, companheirismo, paciência, confiança, além de múltiplas traições.

Muitos chegam a arrancar cada centavo do outro, inventando desculpas para tirar-lhe dinheiro e patrimônio. Ouço histórias de gente que foi envolvida de tal forma a ponto de ter perdido, em tempo record, a casa e todas suas economias, outras que tomaram empréstimos que dão cabo de todo seu salário, envolvidas nas teias manipulatórias que esses tipos sabem tecer tão bem.

Ao pensar em tudo o que se passa quando se está dentro de uma dinâmica abusiva, é realmente surpreendente o que ouço ao final da vasta maioria dos relatos: “Eu ainda amo muito essa pessoa. Sinto sua falta.”

Depois de muito estudar, ler, debater, ouvir e viver esta situação em primeira pessoa, concluo que quem acha que AMA uma pessoa capaz de fazer-lhe tanto mal, na verdade se apaixonou pela ideia de estar apaixonado, se apaixonou pelo ser idealizado do começo e viciou-se nas doses cavalares de atenção despejadas sobre suas cabeças no início e continua “amando” essa ficção.

Talvez isso explique o porquê, mesmo sofrendo de tudo um pouco, ser a descoberta da traição o motivo que mais leva a vítima de abuso a querer romper. Em outras palavras, atinge-se um nível tão alto de cegueira emocional diante do manipulador emocional que tudo é tolerável, menos dividir esse abusador com outro alguém!

No afã de realizar nossos desejos infantis, idealizamos príncipes e princesas e nos apegamos a essa figura criada em nossa mente. Ao falar de alguém que nos submete a abuso e descrever suas ações para conosco, descrevemos alguém por quem seria impossível nutrir qualquer tipo de sentimento bom ou admiração. Descrevemos alguém de quem qualquer pessoa normal iria querer escapar correndo.

Mas ao pensarmos na pessoa que criamos em nossa mente, nos distanciamos da realidade e nos apegamos a alguém que não existe e nunca existiu. Daí, todo e qualquer abuso passa a ser pequeno, tolerável ou “não tão mau assim”, “talvez eu tenha exagerado” ou “foi culpa minha…”

Acontece que perversos são ‘experts’ na arte de fazer a mímica daquilo que desejamos. Conseguem descobrir o que desejamos e assim “imitar” esses comportamentos sendo, no início, são bons ouvintes, muito atentos aos nossos medos, anseios e desejos; um perfeito ombro amigo, alguém com uma sensibilidade que você nunca viu antes, que ouve sua história de vida com admiração, carinho e compaixão.

O que não sabemos, porém, é que quando se trata de gente perversa, esse tempo que gastam prestando atenção em seus alvos nada mais é do que o tempo em que “estudam” suas presas. O objetivo desse “estudo” consciente é:

1. Saber qual papel desempenhar para se tornar amado e importante em pouco tempo.

2. Viciar seu alvo na química cerebral que se produz quando alguém se sente amado verdadeiramente.

3. Juntar informações e dados de sua vida (sim, você se abre completamente) para que possa ter algo para usar contra você, humilhar, traumatizar.

Baseado nessas observações, o bombardeamento de amor acontece de forma massiva, constante e sobretudo RÁPIDA, para manter o alvo distraído e não dar tempo ou abertura ao outro para entender com quem está lidando.

Tudo faz sentido, não?

Faz, muito! Assim sendo, preste muita atenção naquilo que está sentindo agora. Preste atenção nesse “amor” e nessa “falta”. Relembre quem foi ou é essa pessoa durante o relacionamento. Relembre as atrocidades as quais lhe submeteu ou submete. Não deixe que as memórias ruins se apaguem ou se dissociem dessa pessoa que você criou dentro de sua cabeça. Uma existe e é real, está na sua vida e não lhe faz bem. A outra é criação, reflexo daquilo que você DESEJA que ela seja. Preste atenção nisso e responda-se:

É realmente possível sentir amor por alguém que só lhe fez ou faz mal?
Do que exatamente sente falta?
Sabe dar a si mesmo aquilo que dá ao outro e dele espera receber?
Seja honesto em suas respostas e conseguirá dar o primeiro passo para fora desta prisão que chama de AMOR.

Lucy Rocha

Coach de relacionamento, administra a página Relações Tóxicas, na qual dá dicas e apoio a pessoas que vivem, viveram ou sobreviveram a uma relação abusiva. Como advogada, atua principalmente em questões de família. Seu maior prazer é escrever reflexões sobre a vida e sobre o ser humano.

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