Há duas semanas, no estacionamento de um supermercado, minha mãe foi vítima de um sequestro relâmpago. Foram horas de muito medo e apreensão, durante os quais ela somente orou e obedeceu. Passado o susto, já em segurança, por proteção ou choque, contou-nos a história por partes, ocultando os temores e aguçando o bem estar, disfarçando o medo e assegurando a paz.
Por alguns momentos, meu irmão e eu chegamos a estranhar o veredicto, a duvidar de sua calmaria, a temer sua sensatez. Esperávamos mais que o choque estático ou a conformidade virtuosa.
Então lembramos.
Algumas pessoas são como abrigos. Resguardam suas fragilidades para nos abraçar com sua _ aparente _ calmaria. Transbordam ânimo, otimismo e proteção, quando elas mesmas encontram-se fragilizadas. Ocultam seus medos para nos poupar dos nossos, valorizam seu ânimo para nos resgatar da insignificância das horas, do inaceitável dos dias.
Citando novamente “Patrimônio”, de Philip Roth, num dado momento o pai, à beira da morte, indignado diz ao filho (que lhe ocultou uma séria dificuldade): “Somos uma família ou não? Nunca mais tente me poupar…” e continua: “eu tinha que ter estado lá, eu tinha que ter estado lá…”
Por amor ou coisa parecida, fui poupada algumas vezes. Poupada de acertos familiares, dificuldades emocionais, fatos importantes. Em todas as situações, um “carinho” que me isolou num refúgio de tranquilidade enquanto do lado de fora, a tempestade fazia tremer as vidraças. Porém, a verdade tem força para romper os muros que criamos _ ou que criam por nós. E ela me alcançou de qualquer maneira, alheia aos esforços de segurá-la além mar. Porém, a sensação que ocorre depois disso tudo, não é a de que fomos protegidos, mas sim isolados.
Peço àqueles que amo que não me poupem da verdade. Que não construam abrigos onde eu possa ser protegida dos conflitos enquanto a vida se desenrola além dos sorrisos apaziguadores e semblantes de resignação. Que a dificuldade seja o elo que nos aproxima também, talvez até mais que os momentos de bonança e calmaria. Que as vitórias sejam festejadas na sua medida, mas que meus braços possam acolher seus medos, cicatrizes e tristezas na mesma intensidade com que partilham a alegria. Que eu possa ser forte quando você se fragiliza, e nem por isso maior que você. Que possamos dividir dúvidas, anseios, decepções… amparados numa vida de coerência e transparência. Peço que não me resguarde de sua vida, com tudo de bom e ruim que nela cabe. Que não me oculte suas máculas, pois assim não saberei lidar com minhas próprias nódoas. Que sejamos claros, verdadeiros, justos_ nos bons e maus momentos. Acima de tudo, não me poupe de nada.
De qualquer forma, pelo menos na fantasia de nossos pais, seremos sempre seus filhos pequenos, aqueles a quem devem proteger.
Como pais, percebemos o quão difícil pode ser construir ninhos. É tentador arquitetar um lugar de comodidade e aconchego, onde os galhos mais pontiagudos ficam escondidos sob nossas asas tão redentoras. Porém, desejando poupar nossos filhos daquilo que é tão penoso para nós mesmos _ sentimentos como a tristeza, a raiva e o medo_ não os ensinamos a lidar com a aridez que há na vida (pois a vida não é só boa), justamente por não validar aquilo que sentimos ( e eles sentem também), ao camuflar dificuldades e ocultar a dor.
Uma criança precisa entender que sentimentos como a aflição, o desamparo, a raiva e o temor pertencem ao currículo de sensações normais, e fazem parte dessa coreografia tanto quanto a alegria, o prazer e a tranquilidade. Porque se não compreender isso, como irá, ela mesma, adequar-se no dia que experimentar tais impressões?
Sem a verdade, e portanto, sem conhecer realmente aqueles que ama e convive, em que ninho nossos filhos se sentirão realmente protegidos? Que dúvidas ocorrerão quando enfim crescerem e perceberem que haviam sim pontas e espinhos, mas tão camuflados que não perceberam as asas dos pais mutiladas enquanto acobertavam os nós? Que tipo de ligação se estabelece sem o vínculo da confiança?
Minha mãe saiu bem do sequestro relâmpago e, paradoxalmente, meus irmãos e eu só relaxamos quando ela enfim chorou. Quando derrubou seus muros e nos permitiu entrar, partilhando seu medo e vulnerabilidade. Foi quando pudemos abraçá-la e confortá-la na dor.
Finalmente nosso ninho foi bagunçado…
Com as pontas expostas, sentimos nossas asas doendo tanto quanto as dela. Sem as proteções costumeiras, finalmente sentimos que “estávamos lá”…
Imagem de capa: Phovoir/shutterstock
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