relacionamentos

Algumas pessoas vão te abandonar porque têm medo de serem abandonadas por você

Há algum tempo, uma amiga de longa data me contou que a música que tinha maior significado para ela atualmente era “Doesn’t remind me”, da banda Audioslave. Curiosa, fui conferir a letra que dizia algo como: “Gosto de mariposas e conversas de rádio, pois isso não me lembra nada”. E seguia, listando diversas coisas aleatórias que o autor da canção gostava (como martelar pregos e roupas coloridas ao sol) pelo único motivo de que essas coisas não o faziam se lembrar de nada. Achei meio sem sentido, até que, no refrão, veio a explicação: “As coisas que amei, as coisas que perdi / As coisas que julguei sagradas e depois abandonei / Não vou mais mentir, pode apostar / Não quero aprender coisas que precisarei esquecer…”

Eu sabia das perdas recentes de minha amiga, e, por isso, naquele momento compreendi. Ela precisava se proteger, se blindar, se sentir segura de alguma forma. Quando já fomos machucados repetidas vezes, aprendemos a adotar mecanismos de defesa. Nem sempre esses mecanismos são ideais, mas nos ajudam a enfrentar o medo e encontrar algum alívio.

Como você sobrevive depois de um trauma? De que maneira você decide seguir depois que tudo desmorona? Que mudanças ocorrem silenciosamente, sem que ninguém perceba, dentro de você? Você se amortece como minha amiga, adquirindo gosto por dirigir de ré na neblina se isso não lhe lembrar nada, fugindo das lembranças mais significativas da sua vida já que elas lhe causam dor, ou arrisca mais um pouco? Você foge para o Alaska imaginando que lá não terá conflitos ou enfrenta a vida e suas imperfeições de frente? Você tenta superar a dor do abandono sendo aquele que abandona ou experimenta a vida à flor da pele com toda exposição e vulnerabilidade que ela oferece?

Assim como as artimanhas citadas, a autossabotagem é um mecanismo de defesa, e aqueles que têm medo do amor se sentirão seduzidos a agir como aquele que abandona ao invés daquele que é abandonado. O medo do desamparo é tão grande que é preferível ser aquele que renuncia a ser aquele que é desamparado.

Sabe quando você era criança e fazia aquela fileira gigantesca de dominós, mas não ia dormir antes de empurrar todos eles? Ou quando empilhava cartas de baralho, e preferia derrubar tudo a correr o risco de acordar no outro dia e ver o castelo destruído? Você tinha medo de moldar sua alegria em cima de algo e depois ver esse algo desmoronar.

Quando você se machuca repetidas vezes por ter estado vulnerável, por ter confiado, por ter se doado, você acaba se blindando.

Somente fugirá do amor quem muito amou e se despedaçou. Somente se blindará contra a vulnerabilidade quem muito se expôs e sentiu-se desarmado. Somente desistirá de aprender quem teve que lutar para esquecer. Somente negará o que sente quem um dia foi inteiro e se fragmentou.

Clarice Lispector tem uma frase que gosto muito que diz: “Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante”. Acho que essa frase faz todo sentido à medida que vamos entendendo que nem sempre estaremos nos blindando, nem sempre estaremos nos atirando, mas precisamos aprender que viver com coragem é viver com liberdade. E só é livre quem não se encarcera, não se blinda, não se esconde. Assim, por mais que seja um risco, é preciso não ter medo de assumir o que se sente e o que se deseja, pois a gente só vai se curar quando ventilar nossas feridas mais profundas e deixar o tempo tratar…

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Fabíola Simões

Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.

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