Por Octavio Caruso
A palavra “crítica” vem do grego krinein/kriticos e do latim criticu, que diz respeito à crise: provocar a ruptura. Desde o filósofo grego Aristóteles, com sua “Poética”, o primeiro a fazer um balanço crítico, o ser humano se acostumou a analisar uma forma de arte com seus sentidos aguçados. Porém, a prática dessa vertente da filosofia nunca foi compreendida no Brasil. O olhar mais arguto que pretende fragmentar o trabalho na procura de qualidades e defeitos acabou se tornando sinônimo de chatice, o extravasamento de um cineasta frustrado, entre outras definições mais grosseiras. A culpa não é somente do público, daquele raro receptor que se interessa em ler sobre cinema. Esses, sem exagero, merecem uma maior valorização, quando percebemos que o simples hábito da leitura do jornal diário, em nossa nação, já é atitude de poucos.A culpa recai mais sobre os ombros dos próprios profissionais da crítica cinematográfica, aqueles que tratam o tema como se escrevessem de dentro de uma loja maçônica, objetivando mais acarinhar seu ego, que prestar um serviço em favor da Arte.
Não se deve entregar o peixe, exercendo o exibicionismo teórico, mas, sim, ensinar a pescar, ajudar o interessado a aprimorar cada vez mais seu olhar. A maior recompensa para um crítico é perceber que seus leitores estão aprimorando seus gostos, aprendendo a enxergar além da superfície, entendendo como suas emoções foram geradas. Ao mesmo tempo, quando o texto estimula uma atenção exagerada aos aspectos teóricos, pode acarretar ao leitor um prejudicial desprendimento emocional, arruinando parte considerável da experiência. É preciso simplificar ao máximo, sem banalizar a informação. E a paixão, onde entra nessa equação? Meu grande ídolo na crítica cinematográfica é François Truffaut, um homem que era completamente apaixonado por filmes, fazia da Sétima Arte sua religião, colocava o coração na frente da razão. Ele enxergou em Hitchcock uma riqueza autoral que os críticos americanos ignoravam, elevou o diretor ao posto de mestre do suspense. Os críticos franceses da época buscavam o tesouro escondido nas obras menos pretensiosas, uma atitude que acabou sendo copiada pelo mundo afora.
A razão que me fez escolher esse tema foi rever “Elsa e Fred”, filme argentino que levou muita pedrada dos críticos, porém, foi abraçado carinhosamente pelo público brasileiro. O diretor Marcos Carnevale regeu em 2005 essa preciosidade que, uma vez presenciada, faz com que nos lembremos para o resto da vida. Não por sua perfeição técnica ou por atuações exemplares, mas por sua enorme sensibilidade e lirismo ao tratar de um tema difícil. Fred (Manoel Alexandre) é um viúvo septuagenário apaixonado por sua vida rotineira, organizado e avesso a qualquer tipo de aventura ou novidade. Sua ambição é viver o resto de sua vida em paz, porém seu caminho se cruza com o de sua vizinha Elsa (China Zorrilla), outra septuagenária viúva que é o completo oposto dele, ama viver a vida intensamente, muito comunicativa e irreverente. Desse encontro raro nasce uma amizade incomum, onde um aprende com o outro e acabam se apaixonando, da maneira mais verdadeira e bela possível. Carnevale aborda o tema com extrema coragem, sem perder o bom humor e a leveza que elevam esta obra um nível além dos romances usuais que nos acostumamos a ver. Ele salienta que a trama não é apenas sobre um amor entre duas pessoas, mas, sim, sobre um sentimento maior que o puro amor, um elemento transcendental que os torna sócios de um projeto de vida, que dá luz a final muito tocante. Aqui não existe clichê algum, nenhum personagem estereotipado, como é o costume em obras românticas. Sua ideologia baseia-se apenas na vontade essencialmente humana do casal que pretende desfrutar o máximo de amor que podem viver pelo tempo que lhes é dado. Uma experiência imperfeita e inesquecível, que fala direto ao coração, renova as esperanças e a confiança no ser humano em um tempo onde precisamos desse tipo de bálsamo.
E quando o preconceito, na própria crítica profissional, ocorre com gêneros, como o terror, a ficção-científica, ou os musicais? Costumo escutar que o gênero musical não é feito para todos. Muitos dizem que odeiam quando o protagonista interrompe um diálogo e começa a cantar. Seriam o canto ou a dança, um complemento natural ou algo desnecessariamente forçado? Em um filme de ação, vibramos quando o protagonista consegue guiar seu carro com apenas duas rodas, realizando manobras impossíveis, saindo ileso e ainda conseguindo enfrentar o vilão e seus asseclas armados de mãos vazias, vencendo ao final. Por que seria tão absurdo compreender a felicidade do personagem de Gene Kelly, dançando e cantando na chuva, após ver realizados todos os seus sonhos? Ele entoa sorridente: “I’m happy again”. A superação dos problemas é o que o impulsiona naquele momento. A vida como aparentemente intermináveis gotas de chuva, cuja queda ele faz questão de não impedir com sua sombrinha. Oferecendo a um desconhecido aquele guarda-chuva, ele segue despreocupado rumo aos próximos obstáculos que precisará atravessar. Ambos são exemplos de uma mesma categoria. A Sétima Arte tentando tocar o intangível, procurando formas de expressar radicalismos artísticos. Caso sejam utilizados com inteligência, podem resultar em cenas como a de “Perfume de Mulher”. Uma simples dança resolveu provavelmente o que tomaria uma página e meia de roteiro. A maneira sutil com que o personagem cego de Al Pacino demonstra sua dignidade ao dançar, seu comprometimento com sua parceira e o olhar de admiração de Chris O´Donnel já expressam todas as intenções, elevando a qualidade do filme como um todo.
Existem cenas de dança que nos apresentam um personagem, de maneira tão espetacular, que não haveria roteiro no mundo que o fizesse melhor em diálogos. Como Tony Manero (John Travolta) em “Os Embalos de Sábado à Noite”. Por mais que o diretor John Badham tenha realizado um incrível trabalho, só conseguimos nos lembrar da mítica sequência de dança, que representa não apenas o extravasamento de todas as angústias pessoais do personagem de Travolta, como serve para demonstrar sua maior fraqueza: seu orgulho. Definitivamente, não é apenas uma cena de dança. Mesmo em musicais grandiosos como “Sete Noivas para Sete Irmãos”, “Chicago”, “Moulin Rouge”, “Hair” e “A Noviça Rebelde”, o papel da música é o de tentar expressar o inexpressável, assim como o herói que em uma guerra se apossa sozinho de um tanque de guerra e destrói o covil do inimigo. E, convenhamos, acho mais verossímil cantar e dançar na chuva, que tentar sozinho, com um facão, eliminar um exército.
A arrogância na escrita não combina com um profissional que verdadeiramente ame essa Arte, é algo antagônico à sensibilidade que se faz necessária ao analisar alguma obra. Como desprezar gêneros, atores, ou cinematografias de qualquer nacionalidade? Até mesmo no filme mais imperfeito existe beleza. O dever do crítico profissional é procurar, com amor e contínuo estudo, abrir as portas e conduzir a luz.
OCTAVIO CARUSO: colunista Conti outra
Carioca, apaixonado pela Sétima Arte. Ator, autor do livro “Devo Tudo ao Cinema”, roteirista, já dirigiu uma peça, curtas e está na pré-produção de seu primeiro longa. Crítico de cinema, tendo escrito para alguns veículos, como o extinto “cinema.com”, “Omelete” e, atualmente, “criticos.com.br” e no portal do jornalista Sidney Rezende. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, sendo, consequentemente, parte da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica.