Construído em tom de fábula pelo cineasta Jean-Pierre Jeunet, o filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” percorre, através da perspectiva de uma jovem sonhadora, Amélie Poulain (Audrey Tautou), o caminho que leva às belezas da vida. Cheio de nuances, o filme nos leva por uma viagem intimista, lúdica e poética sobre o real sentido da vida e sobre a necessidade de enfrentá-la, por mais que seja dura, solitária e cruel.
Criada sem praticamente nenhum contato social e afeto, Amélie se torna introspectiva e, na tentativa de fugir de uma realidade que se apresenta extremamente cruel e escura, cria um mundo de fantasias, onde as coisas são muito mais interessantes e coloridas.
Esse tom lúdico é reforçado pela bela fotografia criada por Bruno Delbonnel, cheia de cores vivas, sobretudo o verde e o vermelho, assim como a trilha sonora. Outro fator que influencia na beleza e na atmosfera do filme reside nele ter sido filmado em locações parisienses, o que permite mostrar as belezas e idiossincrasias de Paris.
Sendo assim, Amélie sente enorme dificuldade em relacionar-se mais profundamente com alguém, não por falta de afeto, mas por timidez e dificuldade de encarar um mundo diferente do seu. Os traumas causados na sua infância, pelos seus pais, os quais representam o mundo exterior, impedem, portanto, Amélie de encarar a realidade de um mundo que parece lhe assustar.
“Isso se chama encarar a realidade. Mas isso Amélie não sabe fazer.”
Se, de um lado, as dificuldades de relacionamento são um problema para Amélie, de outro o seu isolamento lhe permitiu viver todas as suas estranhezas e “imperfeições”, dando-lhe um caráter único e uma personalidade autêntica, contrariando a padronização a que nos submetemos e que acaba por tolher o que possuímos de único e mais bonito.
A idiossincrasia da nossa heroína permite que ela tenha um olhar mais íntimo sobre o que a cerca, desenvolvendo, assim, uma perspectiva ao mesmo tempo melancólica e poética, que percorre os detalhes mais simples e suaves das situações, bem como a faz percorrer um caminho próprio à sua felicidade, a qual não se constitui em grandes coisas ou lugares comuns e sim em pequenas coisas que, na maioria das vezes, passam despercebidas, mas guardam belezas únicas para quem consegue percebê-las.
“Destino estranho esse de uma moça privada de si mesma. Mas tão sensível aos encantos discretos das pequenas coisas da vida.”
No entanto, por mais que essa constituição torne Amélie uma personagem tão bela e encantadora, a sua solidão e isolamento a impede de viver a realização do que há de mais divino na vida, a saber, as relações humanas, o que só é possível a partir do momento em que estamos dispostos a imergir em mundos diferentes.
Obviamente, criar laços é muito mais difícil para Amélie, já que, ao ser privada do convívio com outras crianças e criar o seu universo, passa-lhe a existir um medo intrínseco de encarar um mundo tão desacolhedor para os sonhadores.
O medo que Amélie sente é o mesmo que sentimos, acima de tudo, se possuirmos uma constituição sonhadora como a sua, a qual, por mais que não se queira, coloca-nos em uma posição de estranhos no ninho. Entretanto, é preciso coragem para romper o medo de encarar um mundo que é duro, principalmente com quem parece não se adequar muito bem a ele, para podermos ir além de nós mesmos e ter laços com pessoas reais, de carne e osso, que fazem parte de um mundo triste e, portanto, podem nos decepcionar, chorar e fazer retornar ao conforto do nosso mundo; mas também fazem parte de um mundo belo, cheio de amor e poesia e, assim, podem trazer muito mais alegria e ternura ao nosso coração.
Dessa forma, é preciso coragem para romper os muros da covardia, pois a vida é sofrimento, a felicidade é apenas lacuna. Todavia, essas lacunas só são percebidas se estivermos atentos às raras oportunidades que a vida nos oferece. Não em grandes acontecimentos, mas nas entrelinhas, nas sutilezas, nos pequenos detalhes, aos quais Amélie era tão atenta, embora lhe faltasse coragem para agarrar as oportunidades, já que:
“Oportunidades são como a corrida da França. Esperamos muito, depois ela passa rápido. Então, quando o momento chegar, é preciso pular o obstáculo sem exitar.”
Faltava a nossa heroína, portanto, coragem. Coragem para encarar o mundo exterior, a realidade, os outros. Coragem para sair do seu mundo e mergulhar em mares obscuros de outros “eus”. Coragem para se arriscar, para cair, para se machucar, para se ferir. Coragem para não ter uma vida que não passe de rascunhos. Coragem para não ter uma vida de lembranças guardadas apenas em uma caixa velha. Coragem para renunciar ao direito inalienável de estragar a própria vida.
O tempo passa muito depressa e, como é dito no filme, de repente, sem nos darmos conta, já temos cinquenta anos. Assim, é preciso estar atento aos pequenos detalhes que guardam a magia de um mundo que, na maioria das vezes, parece tão frio.
Estar atento aos detalhes em que ninguém presta atenção, as pequenas coisas que podem fazer um coração feliz, como entregar uma caixinha com brinquedos guardada há quase cinquenta anos ou ajudar um senhor cego a atravessar a rua, mostrando-lhe cada detalhe que há muito tempo ele não vê.
Amélie nos mostra o lado lúdico e poético da vida, as pequenas belezas que deixamos passar, a ternura que ainda existe no mundo, a essência daquilo que realmente possui valor. Mas, acima de qualquer coisa, mostra-nos que a vida é única e não comporta reprises, de modo que precisamos ser corajosos para vivê-la, para senti-la naquilo que ela possui de melhor, sabendo que não possuímos ossos de vidro e, portanto, podemos suportar os baques que a vida traz, pois, se há magia no mundo, além de enxergá-la, é preciso buscá-la, sobretudo a maior magia de todas, os laços humanos, antes que o coração se torne seco e quebradiço e as emoções do presente sejam apenas pele morta das emoções do passado.