Era uma mulher adulta, ali ao meu lado na manicure. Jovem. Bem mais jovem do que eu. Mas, uma mulher adulta. Tanto quanto eu, estava ali para dar a si mesma o gostinho dessas delícias femininas. Essas gostosuras cotidianas que constituem os prazerosos ritos de vaidade. É bom cuidar de si. É bom achar-se bonita, com as unhas coloridas em tons inesperados. Já pararam para ver a infinidade de cores que inventam para os esmaltes? Eu me divirto!
Outro dia mesmo colori minhas unhas dos pés e das mãos com “Livros inesquecíveis”. Este tinha um tom lindo de azul, entre o marinho e o oceânico. Na outra semana, escolhi “Bagagens & Viagens”, dessa vez era um tom que oscilava entre o vinho e o chocolate. Mas naquele dia, tinha já escolhido a cor mesmo antes de sair de casa; levei na bolsa o “Aguenta coração”! Tem dias que o esmalte, assim como o batom, tem que ser vermelho. Um vermelho desses que não deixa dúvida, sabe? É vermelho MESMO!
Enquanto eu dividia minhas mãos com Mariana (Mariana é minha talentosa manicure), a moça ali ao meu lado deu um suspiro meio de aflição, ou júbilo, não sei ao certo… e disse “Linda essa cor na sua mão! Bem vermelho, né?”. Nossos olhos se encontraram por alguns instantes. E eu vi ali, naqueles olhos da moça, tão mais moça do que eu, algo que me inquietou.
Eu tenho um faro enorme para pescar no ar os sentimentos ao redor. Sobretudo aqueles que doem. No entanto, costumo “ficar na minha”, como se diz por aí. Se a pessoa quiser dar um passo adiante, eu sou ótima ouvinte. Mas sou melhor ainda em respeitar os silêncios alheios.
Bem… A moça ao meu lado na manicure, quis dar um passo além. “Acho lindo esmalte vermelho. Mas, meu marido não gosta!”. Confesso que por alguns instantes me aconteceu algo que é bastante raro: fiquei sem saber o que fazer. Depois de uma confissão tão singela dessas, um sorriso seria pouco, um comentário aleatório, seria menos ainda, um comentário sincero, talvez fosse invasivo.
Mas, alguma coisa dentro de mim fez brotar um desejo incontido de jogar uma faísca naquela alma feminina tão jovem, ali sentada ao meu lado na manicure. Abri um sorriso de mãe. Sabe o que é um sorriso de mãe? É aquele que inclui ouvidos generosos, braços que acolhem e um colo oferecido. Pois eu abri um sorriso de mãe e disse “Ah… seu marido também pinta as unhas?”. Diante da pergunta inusitada, duas coisas inusitadas aconteceram: ao nosso redor fez-se um silêncio, a moça ao meu lado caiu na gargalhada.
Riu gostoso. Até interrompeu o trabalho da outra moça que se ocupava em esmaltar-lhe as unhas com um esmalte sem cor certa, meio branco, meio bege, meio transparente. Findo o riso que fez com ela desse mais um passo adiante, a jovem moça tocou meu braço “Sabe, essa sua pergunta bem-humorada me fez lembrar de uma coisa… Meu marido usa há anos um perfume que me faz espirrar. Por delicadeza, ou por amor mesmo… Nunca mencionei! Como ele só usa o perfume aos fins de semana, eu prefiro tomar um antialérgico a magoá-lo com uma crítica.”
E não é que eu vi ali, no feminino universo do salão de manicure, uma alma de menina ser liberta? Os mesmos olhos que antes tinham cruzado com os meus, e nos quais algo havia me inquietado; vi algo agora que me fez ganhar o dia! A faísca que eu lancei naquela alma obediente, ateou fogo e iluminou, fez nascer um desejo travesso de subverter a ordem estabelecida pelo silêncio das regras de posse.
A mulher adulta, sentada ao meu lado na manicure devolveu-me o sorriso de mãe com um sorriso de filha. Sabe o que é um sorriso de filha? É aquele que inclui beijos estalados na bochecha, gratidão e colo retribuído. Pois ela abriu um sorriso de filha para mim e disse “Hoje eu vou fazer duas coisas: dar um perfume novo ao meu marido e apresentar a ele uma nova mulher. Hoje eu vou de vermelho!”.
Desculpem-me os céticos e desesperançados. Desculpem-me também os azedos. Mas eu insisto em teimar que não há comodismo que resista a um pensamento de alegria. Eu ainda ouso acreditar que o bem se faz ao outro assim, com sorrisos que acolhem e fagulhas de vida que se doam sem nenhuma expectativa. Eu acredito que amor é amor, posse é posse. E um anula o outro, completamente.
Imagem de capa: Eliseu Fiuza
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