Por Cristina Parga
A questão é simples e complexa (…): amor de verdade não dói. Ele inunda o coração e se basta sozinho. Já o apego traz sofrimento, porque guarda dentro de si o medo da perda. Da rejeição. De “ficar sem a pessoa”, de “ficar sozinho”. O amor não pode ter medo de perder porque não perde nunca – ele existe indiferente da reciprocidade. Existe em si mesmo.
Desde pequenos fomos ensinados a pensar em amor e apego como quase sinônimos, e a encarar com alguma benevolência um ciúme “saudável”, ou o medo de perder o amado(a) como prova de que realmente o que se sente é amor. Séculos de literatura, arte e poesia na nossa sociedade ocidental nos moldaram a pensar assim – isso desde as dores do amor romântico do jovem Werther, passando por Lady Gaga, até os cantores atuais da sofrência. Os budistas lidam melhor com a questão – recomendo palestras do Dalai Lama e da monja Jetsunma Tenzin Palmo sobre o tema. Fácil de achar no youtube.
É claro, eu, como a maior parte dos mortais, compreendo racionalmente a diferença entre os dois sentimentos – mas daí a separar apego e amor dentro do coração, são outros quinhentos. Lembro de ouvir palestras e ler sobre o assunto e literalmente passar por cima dele – afinal, eu entendia a ideia mas não via como colocar em prática. Era abstrato demais. Algo que só pessoas muito evoluídas espiritualmente ou com décadas de análise talvez pudessem sentir. Mas não. Um dia aconteceu. E foi num sonho.
Parênteses: Alguns dos nossos melhores insights vêm nos sonhos – não levante correndo para engolir um café e correr para o escritório. Tire pelo menos uns 5 minutos para ouvir o que o seu mundo interno tem a dizer quando você dorme e a consciência relaxa.
Anos depois de um término, sonho que recebo uma carta. Uma embalagem com carimbo e selo de algum país distante. Abro o pacote e encontro um casaco cinzento e antigo, com bandeirinhas, selos e brasões de vitórias passadas. Dentro, uma foto minha. E um poema, numa letra e língua que não consigo entender.
No sonho, vestida com aquele casaco de tantas guerras, percebia que era eu quem ele buscava. A pérola invisível, escondida no conteúdo translúcido da concha. E que ele, debaixo de tantos brasões e realizações, de tantas máscaras a que a vida nos obriga a usar para vencer no mundo, também era. The real deal. O czar medroso, generoso e puro que se esconde por trás da armadura, para não doer mais. É, mas não sabe. Nem quer saber. Quando irá acordar, meu deus?
Nunca – diz meu coração. E de repente me sinto aliviada, sem aquele peso. Porque não preciso de mais nada. O que sinto é suficiente – e enorme o bastante para me fazer querer viver muito mais. Ainda no sonho, passo por aquela rua, aquela casa. Fecho as janelas do táxi, fecho os olhos. Deixo ir.
Estou na praia, sozinha. Observo as ondas à noite e contenho meu desejo de me fundir ao céu e mar noturno. Entre os dedos seguro uma, duas, três conchas – as mais bonitas depois da ressaca. Com cada uma delas pesando suave na mão, espero pelo dia em que possa entregar a dele – o amuleto que o protegeria do mundo cão em que ele (sobre)vive. Esse dia não vai chegar, olho para o mar e sei. Mas isso não muda nada. Nem me faz querer nada que não seja pura oferta da vida, do mar. Do mundo.
Querer, querer. Só queremos. Queremos ter tudo – e vivemos presos no medo de perder o que “conquistamos”. Escuto as ondas indo e vindo e me sinto livre – ainda estou inteira. Cada vez mais. Nossas memórias passam pelo espelho das águas como flashes, mas não trazem saudade – o tempo-espaço é acessível a qualquer fechar de olhos. A cada onda que se quebra no horizonte.
Os budistas dizem que o todo sofrimento vem do desejo (não sou budista e ainda não atingi o nirvana para interpretar corretamente essa frase), e que o caminho para sair da prisão do apego e da dor é deixar ir. Aprender a se bastar. E ficar genuinamente feliz com o crescimento do outro – mesmo que ele tenha escolhido viver longe de você.
Fácil falar, não é? Mas eu juro que num segundo, dentro de um sonho, foi fácil – e a partir daí foi ficando cada vez mais natural.
Porque amor de verdade não precisa do outro. Afinal, o outro está sempre contido dentro do amor. Não como um fantasma – mas como uma constância que faz nosso coração bater mais rápido em cada respirar de maresia, em cada linha de um poema. E não, não dói. A felicidade do outro passa a ser sua também, porque é impossível sentir algo que te completa e expande tanto e ser mesquinho, querendo aprisionar o que só existe quando há entrega – e para haver entrega é preciso haver liberdade.
Amor de verdade é gratuito e autossuficiente, eterno no tempo como uma onda sonora que se propaga infinita, repercutindo no espaço. No espaço, em algum lugar, nós. Lembra?
Não, você não lembra. Mas não faz mal. Eu lembro por nós dois.
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CRISTINA PARGA
Autora de “Furta-cores” (2012, 7Letras, contos) e “Qualquer areia é terra firme” (7Letras, romance, no prelo). Mestranda em Letras, assistente editorial, escritora, redatora, jornalista e insone. Living on coffee and flowers.
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